sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

A Influência e o vulto de Keats sobre a Arte dos Séculos XIX e XX

Caros leitores do Sacrário das Plangências, viso, com esta postagem, ter uma visão ampla da grande reverberação das obras do poeta Romântico inglês John Keats (1795-1821) durante dois séculos de arte. O alicerce básico de uma análise da reverberação de Keats e do frescor de sua obra parte de suas influências, que ficavam bem além das que eram comumente compartilhadas pelos Românticos da época. Ora, Edmund Spencer (1552-1599), John Milton (1608-1674) - autor de "Paraíso Perdido" -, Shakespeare (1564-1616), além de um conhecimento vasto da mitologia grega, enraizavam a poesia de Keats, que ia de encontro ao pensamento de uma poesia que fazia do poeta um prisioneiro: para o autor da Ode ao Rouxinol, o poeta era livre em seu engenho - como bem eram os seus ídolos, espelhos do auge da Poesia Britânica. Em toda a postagem, utilizarei as traduções de Péricles Eugênio da Silva Ramos (1919-1992).

(Na imagem: John Keats)

Para compreender a influência de Keats sobre outros estilos, temos de compreendê-lo como subjetivo, muitas vezes, chegando, em sua maturidade poética, a atingir uma calma de descrição que poucos Parnasianos conseguiram. Aliás, sobre o movimento Parnasiano e Keats, posso referir-me em vários aspectos. Muito se dizia (e se diz ainda hoje) do "redescobrimento" das temáticas clássicas feitas pelos Parnasianos mundo afora, principalmente das temáticas da mitologia grega que, segundo eles, haviam sido esquecidas pelos "excessivamente emocionais poetas do Romantismo". Mas como alegar tal fato se o auge da obra de um dos maiores poetas ingleses Românticos estava cheio dessas imagens? O poeta, ao ver os mármores gregos que o Lorge Elgin havia levado em 1819 para a Inglaterra, inspirou-se de maneira esplêndida nas imagens que estavam desenhadas nos objetos, cuja temática remete aos Centauros e Lápitas presentes no casamento de Pirítoo, rei dos Lápitas (os Centauros, embriagados, tentaram corromper a virgem noiva de Pirítoo e foram atacados por Teseu - presente na ocasião - e por outros Lápidas. A primeira estrofe de Ode sobre uma Urna Grega nos dá a impressão, apesar de sugestiva, da imagem dessa parte da mitologia grega. 

ODE SOBRE UMA URNA GREGA (Trad. Péricles E. da Silva Ramos)

Tu, ainda não violada noiva do repouso,
Criança, de que o silêncio e o tardo tempo cuidam,
Silvestre historiadora, que assim podes exprimir
Um florido conto com maior doçura do que a nossa rima:
Que legenda franjada de folhagens te rodeia a forma
De divindades ou mortais, ou de umas e outros,
Pelo vale de Tempe ou nos de Arcádia?
Que homens são esses ou que deuses? Que virgens relutantes?
Doida perseguição! Que luta por fugir?
Que frauta e pandeiros? Que furor selvagem?

(...)

Não se encontra, no poema, as palavras "núpcias", "guerra", ou semelhantes, nessa primeira estrofe, deixando claro a sugestividade, algo que encontraríamos nos Simbolistas, desta estrofe (em si, o poema é analisado com cuidado até hoje; o seu início e final são considerados, de certa forma, êxitos de um poeta que adentrava no rio de seu auge). A referência clara aos Centauros se dá em "Lâmia", outra evocação à cultura grego-romana. 
Voltando ao Parnasianismo, pensemos que uma das suas grandes obras em todo o mundo fora os "Poèms Barbares", de Leconte de Lisle (1818-1894), cuja evocação à imagem dos Centauros era constante (esse livro teve extrema repercussão no Brasil, influenciando desde a tríade Parnasiana até Francisca Júlia - 1871-1920 -), e que uma de suas grandes bases temáticas fora a "mitologia clássica": será mesmo que o movimento Parnasiano, fora as suas formalidades estéticas, para as quais Keats, com certeza, bradaria um "não", foi um movimento realmente renovador e que abrigou em si características próprias? Digo-o porque sabemos do falecimento precoce do movimento Parnasianista Europeu com a chegada do Simbolismo - e também sabemos da postura pseudo-estéril na América Latina, principalmente no Brasil, apesar de que, para o Romantismo e Simbolismo, os parnasianos tenham se ajoelhados silenciosamente. É evidente que, sem influências, não se faz um movimento - mas tampouco se faz um movimento com o culto ao estéril, ao novo e à auto-proclamação de redentor, mesmo porque a temática base era tratada pelos movimentos que eram combatidos, caso, por exemplo, do Romantismo no qual Keats estava imerso. Portanto, além da própria sombra de outros movimentos, exatamente de um poeta do movimento anterior ao Parnasianismo vinha o vulto de busca ao "clássico parnaso". (Sobre a inclinação do Parnasianismo para Simbolismo, veja este post).

No contexto da metade do Século XIX, Keats também reverberou no Simbolismo (como seria um pouco evidente, pois o movimento é considerado pós-Romântico). Em um dos principais precursores do movimento, Charles Baudelaire (1821-1867), o poeta inglês tinha muito em comum. Segundo Péricles Eugênio da Silva Ramos, a ideia de "joy-melancholy", também fora utilizada muito por Baudelaire porque assegurara o francês ser "a melancolia inseparável do sentimento do belo". Podemos encontrar, visando a obra completa de Keats, a inquietude de Verlaine (1844-1896) e até mesmo de Cruz e Sousa (1861-1898) - (ver "Can death be sleep when life is but a dream..."). 

Uma influência notável da obra de Keats ocorreu com o movimento Pré-Rafaelita, que se opunha à forma de pintura posterior à de Rafael Sanzio (1483-1520), renascentista italiano cuja influência de método foi quase absoluta na arte durante séculos. Para compreendermos como Keats reverberou tanto na poética do grupo Pré-Rafaelita (que era acadêmico, ganhando tons de arte-acadêmica, fundado na Inglaterra, na metade do Século XIX) quanto nas artes plásticas, alicerce do grupo, é necessária a leitura de uma das principais obras do poeta - La Belle Dame Sans Merci (A bela dama impiedosa, em tradução literal):

LA BELLE DAME SANS MERCI (Trad. Péricles E. da Silva Ramos)

Ah! que pode afligir-te, infortunado,
Que assim vagueias pálido e sozinho?
O junco à beira-lago já secou;
Não canta um passarinho.

Ah! que pode afligir-te, infortunado,
De feição macilenta e assim desfeita?
O celeiro do esquilo está repleto,
E finda está a colheita.

Um lírio nessa testa eu bem o vejo,
De suor e febre e de aflição molhado;
E uma rosa que murcha em tua face
Logo terá secado.

Uma dama nos prados encontrei,
Toda-formosa, filha de uma fada:
A cabeleira longa, os pés ligeiros,
A vista descuidada.

Tomei-a em meu corcel de passo lento,
E o dia inteiro nada mais vi,não;
Pois pendida de lado ela cantava
De fada uma canção.

E fiz-lhe uma grinalda para a fronte,
E pulseiras e um cinto redolente;
Ela me olhou com ar de quem amasse,
Gemendo suavemente.

Procurou para mim raízes doces,
Orvalho de maná e mel do mato;
E numa língua estranha murmurou:
“Eu amo-te de fato”.

Levou-me para a sua gruta mágica,
E com suspiros fundos me fitou;
Fechei-lhe os olhos tristes, descuidados,
-        Meu beijo a acalentou.

Na gruta, sobre o musgo, nós dormimos,
E ali sonhei – que triste a minha sina! -
O último sonho que haja eu sonhado
No frio da colina.

Guerreiros, e reis pálidos, e príncipes,
Todos, de morte pálidos, eu vi,
E me diziam: - “Pôs-te em cativeiro
La belle Dame sans merci”.

Com o negro aviso, seus famintos lábios
Vi escancarar-se à sombra vespertina;
E despertando me encontrei aqui,
No frio da colina.

E este é o motivo pelo qual eu me acho
Aqui, vagando pálido e sozinho,
Malgrado, seco o julgo à beira-lago,
Não cante um passarinho.


Vejamos agora uma pintura de John Willian Waterhouse (1849-1917), cujo nome é, sem surpresas, La Belle Dame Sans Merci:


Dos Pré-Rafaelistas há vários outros exemplos da alegoria "La Belle Dame Sans Merci" (ver, por exemplo, o clássico de Frank Dicksee). Sabe-se que a influência desse poema remete aos clássicos ingleses, principalmente no que se diz à ambientação medieval, ao isolamento numa ilha que leva ao encontro de um ser mágico que enleva o espírito. Keats o fez o poema de uma maneira com que parecessem o amor e a tristeza-íntima, juntos, numa "joy-melancholy", de fato.

Indo para uma outra influência, também no âmbito da arte plástica, mas que tem também a sua arte poética, Keats pode ter sido bebido pelos Surrealistas de forma não-direta. Sabe-se que muitos do movimento Surrealista baseavam-se no Simbolismo para moldar uma estética mais ousada e além-mente, algo que o próprio movimento Simbolista já havia feito. De certa forma, Keats nunca foi um poeta de exatidão terrena, vivendo mais em sonho do que em vida e uma poética extremamente "nefelibata" (que anda nas nuvens), e tendo a sua obra (muito alegórica nas imagens, mas serena no meio de descrição)  sido uma influência para os Simbolistas, por qual motivo não seria para os Surrealistas (principalmente para os pintores)? E aqui faço uma divagação: é possível, então, o deságue da poética de Keats no Século XX de forma transfigurada, mas ainda forte; porém seria obstrutivo a este pensamento o fato de que os Pré-Rafaelitas, corrente extremamente conservadora de Arte, basearam-se, seja nas artes plásticas ou poéticas, em grandes obras de Keats? Salvador Dalí (1904-1989), por exemplo, tinha como um dos principais ídolos o próprio Rafael Sanzio a cuja arte os Pré-Rafaelitas combatiam? Creio que não seja impraticável botar Keats como um vulto de influência nas duas correntes, mesmo porque a sua poética perambulava  sugestivamente entre o descritivismo  melancólico, o sentimento-raro, a evocação da cultura clássica, dando ao leitor vários caminhos a serem seguidos. A realidade é que Keats não fora um poeta somente Romântico, fora um precursor do que estava por vir e um cantor do que já havia sido escrito - ou seja, um poeta absolutamente atemporal.

Com o passar do tempo, Keats ganhou notoriedade e as suas odes foram aclamadas como obras essenciais da literatura mundial. O filme Bright Star, de 2009 (que foi analisado neste post ), foi uma demonstração da atualidade do poeta que, apesar de ter uma influência antiga e de ter perambulado entre vários estilos, não canta a um saudoso coração inglês: canta ao coração humano.

Abraços, Cardoso Tardelli

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