segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Um Descobrimento dos Simbolistas Brasileiros - Parte X

Caros leitores do Sacrário das Plangências, dando continuidade ao estudo sobre o brasiliano Simbolismo, discorrerei sobre três dos mais importantes de nosso movimento - apesar de não terem tido continuidade de nome após o domínio Modernista em nossa literatura. Em um dos casos - o de Silveira Neto - Andrade Muricy (a fonte de nosso estudo, sempre é bom lembrar) colocou, em seu Panorama, dezenove poemas de sua obra, além de vasta biografia, atingindo certa igualdade com Cruz e Sousa, Alphonsus de Guimaraens e Emiliano Perneta - autores que, aos olhos de Muricy, sempre foram o alicerce do movimento em sua fase ortodoxa.

Silvera Neto (1872 - Morretes - PR - 1942 - Rio de Janeiro):

Dos poetas mais essenciais no Simbolismo brasileiro, além de ser desenhista e pintor, foi um típico torre de marfim, sendo extremamente escapista, tristonho, altivo perante a si mesmo, mas, não obstante, foi um florianista declarado, dando altos brados contra a monarquia, indo de encontro à velha argumentação a que ainda se ouve cujas palavras se baseiam na sentença "O Simbolismo não continha nem poetas envolvidos em política, tampouco poemas tecidos nesse âmbito". Contribuinte do magnífico jornal O Cenáculo, talvez o mais importante jornal do estilo publicado no Brasil, "chegou a causar ciúmes em Cruz e Sousa devido a empolgação de Nestor Vítor pela poesia do jovem Silveira Neto", segundo Andrade Muricy. O seu livro Luar de Hinverno (1901), com o "H" típico do Simbolismo, pois arcaizava o nome, causou um estrondo no estilo, sendo posto ao lado de Alphonsus de Guimaraens como Simbolista em atividade de melhor qualidade pós-Cruz e Sousa, falecido em 1898. Não fugia das temáticas políticas, tampouco das temáticas de perscrutação, sendo, por tal, descrito como um "romântico de bem lavorados versos parnasianos", ou como Nestor Vítor o descreveu, "um Castro Alves que se desesperasse". Após a morte de Emiliano Perneta - o Príncipe das Letras Paranaenses -, em 1921, ocupou a cadeira de nº1 da Academia Paranaense de Letras.

PÓRTICO

Versos - mendigos de mantos reais -
Ide, que vos esperam sete espadas.
Fugi aos olhos d'oiros senhoriais:
Antes a prece aldeã pelas estradas.

Ide arrastar o meu burel de monge;
(Quanta saudade esse burel traduz...)
Se encontrardes o Mundo, tente-o longe,
Porque os seus braços são braços de cruz.

Direis a uns Olhos - Olhos onde a sorte
Pôs meu Ser a rezar, como em altares -
Que me vou de caminho para a Morte.

E a Morte... essa verá, na triste hosana
Do poente roxo que orla os meus olhares,
Como anoitece uma existência humana.

(Em Luar de Hinverno)

GLOSSÁRIO:
Pórtico: Arquitetonicamente: Arcada; Portal.
Burel: Tecido grosso de lã usado por monges, de quando em quando, por luto.
Hosana:  Hino eclesiástico. Fig: Aclamação, louvor.


RÉQUIEM DO OCASO

Alma, põe o teu préstito a caminho,
Que anda por tudo o réquiem do sol-posto

(Do Luar de Hinverno) 

Paramentos de fogo, em molduragem
Do céu da minha terra à Ave-Maria...
Acompanhando o féretro do dia
Pela câmara-ardente da paisagem;

Damasco em chama circundando pelas
Meias-tintas da luz crepuscular;
Pompa de trono viúvo, que as estrelas
Virão, círios da noite, memorar.

Como o soturno badalar das onze,
Tredo, ao pavor da meia-noite leva,
Sois o portal dos túmulos da treva,
Crepúsculos de pérola e de bronze.

Que saudade, sentindo-vos, acorda
Em minha alma, crepúsculo também,
Sombra que um templo de ideais recorda
E na sombra ficou de Pedro Cem.

Brumas do Ocaso! Transição da vida
Para o desconhecido da hora extrema;
É a luz gloriosa, a hipérbole suprema,
No sudário da noite dissolvida.

Poentes que não mudais!
Céu, que é o mesmo de séculos antigos,
Arqueado sobre berços e jazigos
Que vêm e vão nos tempos imortais.

Sois como os espelhos que de um rosto amado
Avaro retivesse a imagem linda:
Ao contemplar-vos eu revejo ainda
O estranho mundo que há no meu passado.

Casa paterna, que não mais voltou.
Flor da inocência aberta no carinho
De um berço, qual nas plúmulas de um ninho
Que em madrigais se alvoroçou.

Infância, áureo folguedo em que, de um salto,
A vida nos desperta para o gozo.
Na graça pura e agreste de um cheiroso
Campo de flores, quando o sol vai alto.

Tempos de moço, em que arvorando o Ideal
Seguimos todos, caravana lesta,
Rompendo a vida, pássaros em festa,
À luz da fé, que é a luz transcendental.

E quando, ó moços, a devesa é longa,
A fulgurar de tanto sonho, a estrada
É como a Via-Láctea desdobrada,
Que a perspectiva do Infinito alonga.

Mocidade! Beleza que embalsama
Um canteiro de rosas onde, a flux,
Como em taças, a arder o sol derrama
O champanha da luz!

Tarde que morre, luz que bruxuleia
Como a de velhas lâmpadas suspensas,
Evocando o rumor de horas imensas
Que nos ficaram, de que a nossa vida é cheia,

Passai de vez; à noite se debruça
Por todo o vosso manto de lilás,
Para que sonhe o pobre que soluça,
E a canseira dos homens durma em paz.

Rio - 1920

(Em Ronda Crepuscular, 1923)

GLOSSÁRIO:
Paramento: Adorno, enfeite.
Féretro: Caixão, esquife.
Tredo: Traiçoeiro, falso.
Pedro Cem: Personagem popular em Portugal, que de fato existiu, mas que se proliferou como fábula no cordel brasileiro e nos poemas comuns ao povo português (muitos Simbolistas tinham raízes e influências de cordel e populares). Contava sobre um rico comerciante que tinha cem naus (daí o nome Pedro Cem, apesar do construtor original ser Pero Docem). Para melhor reger o seu negócio, começou a construir uma Torre perto das barras Douro, em Quinta da Boa Vista, para observar as suas naus. O símbolo a que o poema se refere é sobre a ambição de Pedro Pedrosem da Silva, outro burguês que residiu nessa torre. Burguês, tornou-se pobre e viveu em pobreza, o que ocasionou a lenda de que ele havia desafiado Deus, que o havia punido com a perda de seu status na sociedade.
Avaro: Que tem avareza.
Plúmula: Pena pequena.
Devesa: Alameda que limita um terreno.
Flux: Fluxo; em grande quantidade, em jorros.
Bruxuleia: Brilhar frouxamente ou osciladamente.

ESCOMBROS

Recordam templos de um ardor violento,
Escombros! que saudade os acompanha!
São os profetas do Aniquilamento,
Petrificados numa dor tamanha...

Jazem deuses e ritos - caos poeirento -
Nessa de pedras agonia estranha;
Vasto epitáfio em lúgubre memento,
Das grandezas que a Morte à Vida apanha.

De olhá-los gosto em noite atormentada,
Quando a terra se turba a ouvir, crispada,
Gemer nas ruínas o coral dos ventos.

Lembram-me a dor e todo esse deserto
Que transfiguram da alma o lírio aberto
Numa panóplia de punhais sangrentos...

(Em Luar de Hinverno)

GLOSSÁRIO:
Lúgubre: Fúnebre, funesto, sombrio, obscuro, tristonho, lôbrego.
Memento: No caso, marca que serve para lembrar algo.
Turbar: Revoltar-se; agitar-se.
Crispada: Contraída, encolhida.
Panóplia: Armadura de cavaleiro na Idade Média.

OS PESSEGUEIROS

Ei-lo um vergel (tu dizias)
De pessegueiros em flor,
Aquele tempo, se o vias
Pela esmeralda do amor,

Com que dos sonhos cobrias
Os pessegueiros em flor.

Gorjeavam nele as horas
Desde a alvorada ao sol-pôr,
Pondo um barulho de auroras
Nos pessegueiros em flor,

De madrigais e doloras
Desde a alvorada ao sol-pôr.

E a que sonhavas na fronte
Grinalda branca depor,
Enflorava-te o horizonte
De pessegueiros do amor;

As flores, tinha-as no monte,
Para a grinalda compor.

E era tão linda a grinalda
Que parecia da cor
Dos lírios e da esmeralda
Dos pessegueiros em flor.

Não há montanhas de falda
Florida em tão bela cor.

Mais bela, porém, tu eras,
Purpureada de rubor,
Como a Alvorada de esperas
Às portas d'ouro do Amor.

Mais linda que as primaveras
Dos pessegueiros em flor.

Curitiba - 1908

(Em Ronda Crepuscular)

GLOSSÁRIO:
Vergel: Jardim, pomar.
Madrigal: Composição poética com caráter galante, direcionado às damas.
Falda: Arredores da montanha; sopé.
Rubor: Qualidade de rubro.

Oliveira Gomes (1872 - Rio de Janeiro - 1917 - Rio de Janeiro):

Filho de portugueses não abastados, Oliveira Gomes se destacou muito por sua carreira jornalística no Rio de Janeiro, cidade a que sempre demonstrou uma imensa paixão. Apesar de ter estudado durante pouco tempo em Escolas Regulares, nunca se formou. Contudo, a sua ânsia por leituras o fez um perfeito dominador do idioma, pois, mesmo que não tenha tido se graduado, teve uma leitura muito além da de muitos poetas da época. Seu alicerce cultural, essencialmente, era da cultura portuguesa. Fundou a sociedade "Os Novos" com companheiros de Simbolismo, como Neto Machado, Gustavo Santiago e Emílio Kemp, e lançou a revista Vera-Cruz, cuja importância histórica para o movimento é inegável. Escrevia poemas em prosa, romances, mas somente teve um livro publicado em vida - Terra Dolorosa - em 1899, deixando o jornalismo o consumir totalmente a partir de 1906, mas tendo a serem publicadas várias obras de romance. Mesmo não sendo um boêmio, morreu de tuberculose, muito devido à sua dedicação doentia ao trabalho, fazendo com que pouco comesse e pouco dormisse.

BRUMAS

A Alberto Bramão

Aves fantásticas, aves de cinza, sem cânticos, sem ninhos, sem bater de asas farfalhantes, frias e desoladas, acorrerem por um país azul espalhando nostalgia e tédio...

Lembram aspirações vagas, irrealizáveis, sonhos que se não sonharam bem, gestos de mão engelhadas chamando de longe as quimeras perdidas.

A Morte formou-as talvez do seu hálito nevado e lançou-as para o mundo a enturvá-lo e a afligi-lo.

E vão, e seguem, unidas, silenciosas, asas mortas sobre o azul dos montes e o verde do mar, atrofiando a luz, semeando lágrimas no ar, aves de cinza, aves de morte, aves de maldição!

Sobre as coisas todas cai o peso das suas asas inertes; as grande montanhas não as detêm, o sol não as destrói, e elas vão, azul em fora, caravana fantástica e monstruosa, conduzindo as nostalgias e o tédio. O seu bando é longo e triste como um cortejo de mortos e desfila pesadamente, silenciosamente, num rolar de prantos nebulados que vêm de olhos negros de dor, de olhos anoitecidos na clara manhã do primeiro beijo, do primeiro amor, da primeira alegria.

Imagens de corações que já morreram e não têm um caixão nem uma cova e erram pela vida aos atropelos da multidão, batidos pelos olhares cruéis dos que são felizes e não choram e não sabem apiedar-se...

Imagens dos risos que murcharam e rolaram da jarra de coral duma boca de mulher que amou e foi traída e abandonada...

Imagens dos olhares saudosos das mãos que perderam os olhos e o marido e ficaram a envelhecer sozinhas, sem terem ao seu lado a velhice amiga do esposo nem a mocidade carinhosa dos filhos...

Imagens da mágoa infinita dos que na vida desfraldaram o lábaro das suas aspirações e o viram arrancado das suas mãos e roto e pisado...

Imagens dos nossos dias, das nossas horas torturantes de Artistas, de Sonhadores a quem o destino traçou uma estrada azul e infinita por onde os nossos pés marcham ensanguentados, feridos nas estrelas!...

Brumas! aves de cinza, aves malditas! voai!... voai!...

Para além fulgem estrelas na fuligem da noite. Ide apagá-las, ide enregá-las. Brumas frias, brumas magoadas, sois tristezas de astros que andam a chorar!... Ide, brumas; ide, aves sem cânticos e sem ninho; levais aos astros felizes as lágrimas dos sóis doloridos!

(Em Terra Dolorida)

GLOSSÁRIO:
Lábaro: Bandeira.


Gustavo Santiago (1872 - Rio de Janeiro - 1920 ou 1921 - Rio de Janeiro):


Um poeta "trajando sempre de luto, jaqueta à Barrès, cabeleira de azeviche, sempre e ternamente revolta, à cabela um largo chapéu de lebre, um sombreiro de grandes abas para épater, não mais os burgueses, mas os pássaros agoureiros da mediocridade, lunetas atadas a uma larga fita preta e atrás das quais se encontram dois olhos negros e belos (...)", escreveu o seu contemporâneo Elísio de Carvalho, que também disse que todo o ser de Santiago dava a certeza de que ele era um poeta, sem dúvidas, a quem quer que fosse que o olhasse. Dândi, fervoroso defensor do nefelibatismo, chegava a ter extravagâncias como servir um banquete de violetas temperadas (quais as alfaces são), com azeite e vinagre. Acima de tudo, a persona artística de Santiago impressionou pela qualidade, profundidade e influência. Em sua obra, há um Romantismo perambulante, encantador, cingido aos Símbolos de sua época, para os quais ajoelhava-se em culto. A data de sua morte ainda não foi totalmente esclarecida.

PÁSSAROS BRANCOS

Asas brancas da cor do céu de estranha noite,
A carícia da treva às nervuradas guias,
Ei-los, passam em bando às longes serranias,
O píncaro a buscar, que seguro os acoite.

No escancaro de luz dos outobrinos dias
Um, que, primeiro e aflito, à alvorada se afoite,
Cegue embora! Como um deus que a loucura enoite,
Triunfante surgirá à flor das fantasias.

Pássaros brancos... Ora! a alegria bisonha
Na esperança que dentro o verso traga e exponha,
Cantante como o riso ou quérulo de dor...

Sondai-lhe bem o olhar: nesgas róseas de nuvem,
Descobre-se-lhe nele - almas que então enviúvem -
Todo o pesar de quem sofre penas de amor!

(Em Pássaros Brancos, de 1903)

GLOSSÁRIO:
Píncaro: Cume.
Acoitar: Dar proteção, esconderijo.
Quérulo: Queixoso, plangente, lamentoso.
Nesga: Pequena porção de um espaço.

SÍMBOLO

Eu sei de uma velhinha de cem anos,
Ou talvez mais,
Que ainda tem sonhos, ainda tem ideias,
Ainda se nutre de ilusões e enganos.

Mora no vão de uma floresta,
À beira-rio,
E, seja inverno ou seja estio,
Anda-lhe sempre o coração em festa.

É cega, já não vê, de tanta cousa
Que viu por este mundo.
Nos seus olhos, porém, foi tão gloriosa
A luz , e o seu poder foi tão fecundo,
Que ainda agora,
Naquela noite escura,
A doce criatura
Parece contemplar risonha a aurora.

Na trama de um tecido original,
De pura fantasia,
Trabalha dia a dia,
Sem rival;
E não cai folha ou passa grão de areia,
Que a não sinta desperta trabalhando
No seu tear,
A cantar:
É a aranha a tecer a sua teia,
É a lua sonâmbula sonhando!

(Biblioteca Nacional de Obras Célebres, Vol. XXII, pág. 11.176)


Caros leitores do Sacrário das Plangências, terminada aqui está a décima parte do estudo sobre o brasiliano Simbolismo. Muito pode se questionar sobre o vocabulário utilizado - excêntrico até para a época -, mas para responder a tal fato, a argumentação não-parafraseada do simbolista português Eugênio de Castro, no prefácio de seu Oaristos (1890), pode ser utilizada em farta escala: 2/3 de nossa língua, tão rica, tão vasta, está escondida sobre algum véu escuro de aborrecimento mental, seja por preguiça ou por apelação de clichês. Os simbolistas, como Eugênio de Castro, utilizavam de um grande vocabulário para expandir as suas expressões e as suas próprias percepções de mundo, por meio da verbalização e de seu desenvolvimento.

Abraços,
Cardoso Tardelli

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O Veredicto de Cruz e Sousa acerca do Abolicionismo

Caros leitores do Sacrário das Plangências, esta postagem será um pouco diferente das demais encontradas neste blog. Pouco discorrerei - pois o texto que transcreverei já muito expõe por si. É um precioso documento histórico-literário escrito por Cruz e Sousa (1861-1898), em 1887, e que foi publicado em 22 de Julho do mesmo ano, no periódico Renegação, portanto, um pouco menos de um ano antes da Lei Áurea - que determinou o fim da escravidão nas brasilianas terras.

(Na foto: Cruz e Sousa)

Cruz e Sousa, filho de escravos, negro sem mescla, participou com alento das campanhas abolicionistas, mas, como sabemos, uma lei, tão somente, não liberta a mentalidade escravocrata de um povo e tampouco cria meios pelos quais os recém-libertados negros possam se sustentar. No livro biográfico Cruz e Sousa, de Paola Prandini, do Selo Negro, há uma análise um tanto ingênua dos problemas evidentes das leis envolvendo a escravidão brasileira (inclusive acerca das abolições no Ceará e no Amazonas, em 1884, anteriores à abolição geral). Quando lemos "entre os resultados nefastos desse descaso" para caracterizar como fora a ação dos movimentos pró-abolicionistas e da abolição, em si, há um real descaso para com o contexto histórico da época.
Muitos talvez não tenham ainda compreendido que a escravidão, instituição medonha e malograda, era o único meio de subversão social e trabalhista no qual viu-se a sociedade durante séculos, tornando, não obstante os movimentos de abolição, a escravidão uma sombra fixa na sociedade e que dificilmente seria posta frente à frente com uma luz justa como a da liberdade e da justiça social. Um dos exemplos que podemos dar é a Revolta dos Malês, em 1835, que, apesar de ser promovida por escravos, tinha caráter escravocrata. O fato é que o escravismo estava socialmente enraizado no Brasil e livrar-se desse meio desse meio de exploração, como vimos, não era somente uma questão de boa-vontade, mas uma questão de superação de um tempo e de privilégios. 

Veremos, após a leitura do texto de Cruz e Sousa, retirado do citado livro de Paola Prandini, veremos que a ideia de uma libertação organizada já era  pensada pelo Cisne Negro, cujo ideal  e gênio sempre estiveram além de seu tempo. Mais do que ninguém, ele sabia que não bastava a liberdade: necessitava-se de uma nova sociedade.

O ABOLICIONISMO - Cruz e Sousa

A ação que o Abolicionismo tem tomado nesta capital é profundamente significativa. Nem podia ser menos franca e menos sincera a adesão de todos a esta ideia soberana, à vista dos protestos da razão humana, do patriotismo e caráter nacional ante tão bárbara e absurda instituição - a do escravagismo.

A onda negra dos escravocratas tem de ceder lugar à onda branca, à onda de luz que vem descendo, descendo, como catadura do sol, dos altos cumes da ideia, preparando a pátria para a organização futura mais real e menos vergonhosa. Porque é preciso saber-se, em antes de se ter uma razão errada das coisas, que o Abolicionismo não discute pessoas, não discute indivíduos nem interesses: discute princípios, discute coletividade, discute fins gerais.

Não vai unicamente pôr-se a favor do escravo pela sua posição tristemente humilde e acobardada pelos grandes e pelos maus, mas também pelas causas morais que o seu individualismo traz à sociedade brasileira, atrasando-a e conspurcando-a.

Não se liberta o escravo por pose, por chiquismo, para que parece a gente brasileira elegante e graciosa ante as nações disciplinadas e cultas. Não se compreende, nem se adaptando ao meio humanista a palavra escravo, não se adapta nem se compreende da mesma forma a palavra senhor.

Tanto tem de absurda, de inconveniente, de criminosa, como aquela. Se a humanidade do passado, por uma falsa compreensão dos direitos lógicos e naturais, considerou que podia apoderar-se de um indivíduo qualquer e escravizá-lo, compete-nos  a nós que somos um povo em via de formação, sem orientação e sem caráter particular de ordem social, compete-nos a nós, dizíamos, fazer desaparecer esse erro, esse absurdo, esse crime.

Não se pense que com a libertação do escravo virá o estado de desorganização, de desmembramento no corpo ainda não unitário do país.

Em toda revolução, ou preparação de terreno, para um progresso político seguro, em todo desenvolvimento regulado de um sistema filosófico ou político têm de haver, certamente, razoáveis choques, necessários desequilíbrios, do mesmo modo que pelas constantes revoluções do solo, pelos cataclismos, pelos fenômenos meteorológicos, descobrem-se terrenos desconhecidos, minerais preciosos, astros e constelações novas. O desequilíbrio ou o choque que houve não pode ser provavelmente sensível, fatal para a nação. Às forças governistas competem firmar existência de trabalho do homem tornado repentinamente livre, criando métodos intuitivos e práticos de ensino primários, colônias rurais, estabelecimentos fabris etc.

A escravidão recua, o Abolicionismo avança seguro, convicto, como uma ideia, como um princípio, como uma utilidade. Até agora o maior poder do Brasil tem sido o braço escravo: dele é que parte a manutenção e a sustentação dos indivíduos dos pais dinheirosos; com o suor escravo é que se fazem deputados, conselheiros, ministros, chefes de Estado. Por isso no país não há indústria, não há índole da vida prática social, não há artes.

Os senhores filhos de fazendeiros não querem ser lavradores, nem artífices, nem operários, nem músicos, nem pintores, nem escultores, nem botânicos, nem floricultores, nem desenhistas, nem arquitetos, nem construtores, porque estão na vida farta e fácil, sustentada e amparada pelo escravo dos pais, que lhes enche a bolsa, que os manda para as escolas e para as academias.

De sorte que, se muitas vezes esses filhos têm vocação para uma arte que lhes seja nobre, que os engrandeça mais do que um diploma oficial, são obrigados a doutorarem-se porque se lhes diz muito isso não custa e que poderão, tendo o título, ganhar mais facilmente e até sem merecimento, posições muito elevadas; e mesmo porque, ser artista, ser arquiteto, ser industrial etc. é uma coisa que, no pensar acanhado dos escravocratas, dos retrógrados e dos egoístas, não fica bem a um nhonhô nascido e criado no conforto, no bem-estar, no gozo material da moeda dada pelo braço escravo."

Bem vimos que Cruz e Sousa estava empolgado com o avanço do Abolicionismo e de suas causas, mas cria numa ação governamental para impedir uma ruptura maior num país cujos alicerces sociais e políticos eram frágeis. O poeta, no caso, demonstrava a percepção de que, libertando os escravos, o país encontraria-se de uma maneira como nunca se encontrou e os riscos disso, sem os devidos cuidados, era o caos tanto brindado aos negros quanto aos ricos. Sabemos que os ricos trouxeram mão-de-obra estrangeira - e os negros erraram a esmo numa sociedade sem escravidão em lei, mas plena dela em mente.

Abraços,
Cardoso Tardelli

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Um Descobrimento dos Simbolistas Brasileiros - Parte IX

Caros leitores do Sacrário das Plangências, continuando com o estudo "Um descobrimento dos Simbolistas Brasileiros", discorrerei sobre algumas das mais importantes figuras dentro do movimento, mas cujas obras poéticas pouco tiveram reverberação, muito pelo malogro que já perambulava o movimento após os julgamentos de José Veríssimo sobre os livros primeiros de Cruz e Sousa - Missal e Broquéis -, lançados em 1893. Em dois dos três casos que serão relatados, as obras estavam (e ainda estão) esparsas e deram a Andrade Muricy - lembro-lhes que a fonte é o Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro - grande trabalho para a reunião de uma pequena quantidade de poemas para o livro. Isso ocorreu muito no movimento Simbolista brasileiro devido à grande quantidade de publicações periódicas, efêmeras na medida que convinham-lhes, nas quais os autores sentiam-se confortáveis em publicar e ficar fora de qualquer julgamento com base na delinquência do radicalismo.

AUTORES SIMBOLISTAS:

Severiano de Resende (1871 - Mariana - MG - 1931 - Paris):

De vida turbulenta desde os seus tempos acadêmicos (fora jubilado por defender, solitariamente, um professor de ideias monarquistas), foi o melhor amigo de Alphonsus de Guimaraens - tendo este lhe dedicado grande afeição artística e religiosa, dedicando-lhe o livro Setenário das Dores de Nossa Senhora - e um grande polemista, seja em sua vida sacerdotal, abandonada a contra-gosto, ou em sua carreira jornalística. Residindo em Paris no início do século XX, colaborou na Mercure de France, a mais importante revista Simbolista mundial, com a seção  "Lettres Brésiliennes". Segundo Andrade Muricy, "Severiano de Resende foi panfletário audacioso; hagiógrafo irreverente, e poeta de talento".

O HIPOGRIFO

A  José Freitas Vale

Resfólega o hipogrifo, indômito, batendo
No asfalto as patas d'oiro, e os olhos de água adusta
Sobre as nuvens e além dos sóis ovante erguendo,
Já no azul a cabeça em fogo barafusta.

O éter transpõe, aflando as asas, belo e horrendo,
E haurindo a Vida e a Graça e a Ideia eterna e augusta,
Oh! como eu nesse arroubo insofrido compreendo
Que ao estranho hipogrifo o gesto astral não custa.

No solo os áureos pés, no empíreo em glória a fronte,
Terras, mares e céus, de horizonte a horizonte,
Mede, calcando o pó, e os páramos transcende.

Brotam fráguas de luz e na poeira dos seus rastros
E nas landas glaciais e tristes, ermas de astros,
Novas constelações o seu hálito acende.

(Em Mistérios, de 1920)

GLOSSÁRIO:
Hipogrifo: Animal fabuloso, alado, metade cavalo, metade grifo (que é metade leão e águia).
Adusta: Muito quente, fervente.
Ovante: Triunfante.
Barafustar: Movimentar-se com violência.
Éter: Por extensão: o espaço celeste.
Haurir: Sorver, retirar, beber, esgotar.
Arroubo: Êxtase, enlevo.
Empíreo: Relativo ao Céu; superior,.
Páramo: Planície deserta.
Frágua: Calor intenso. 


TEOFANIA

Certo novas terás deste homem pardo
De hirsuto pelo e de melena ao vento:
Tem no jarrete o nervo do leopardo
Nos marnéis galopando de espavento.

É Leviatã e Behemoth, e luta
Como os mamuts*, como os megalossauros
Na expansão de uma força resoluta
Comandando ciclopes e centauros.

Desde os confins das brumas hiperbóreas
O seu rastro traçou tortuosas sendas:
Dele contam-se horríficas histórias,
Narram-se dele tétricas legendas.

Quantas línguas possui e quantos dentes,
Quantos idiomas há no seu regougo?
Lança dos olhos chispas transcendentes
E da fauce vomita sangue e fogo.

Nas suas múltiplas metamorfoses
Assemelha-se aos ogros e aos onagros
E imita muita vez do vento as vozes
Pela noturna solidão dos agros.

Não cuides, filha, que ele é o lobisomem
Noctambulando nos teus pesadelos:
Essa abantesma é simplesmente um Homem
E os seus mistérios quem há de entendê-los?

Antes que o mundo conflagrando-se arda
No desmoronamento derradeiro,
Saberás de repente que não tarda
A aparecer o grande Aventureiro.

Certo novas terás desse homem pardo
De hirsuto pelo e de melena ao vento:
Tem no jarrete o nervo do leopardo
Nos marnéis galopando de espavento.

Roga pois aos teus anjos tutelares
Que removam de ti o horrendo aspeito
E se um dia por ele resvalares
Traça o sinal da cruz sobre o teu peito.

E que nunca essa elétrica pupila
A alma te escute e o verbo lhe ouças nunca...
Não mais então serias tu tranquila
Sob a ameaça da sua garra adunca.

Já o seu tropel estrepitoso atroa...
Filha, sossega o coração e dorme.
Eu rezarei vesperalmente a noa
Que há de guardar-te da Ilusão enorme.

(Em Mistérios)

* No original está "mammuths", exagero típico dos Simbolistas que praticavam livre galicismo (no Francês, é mammouth); a grafia correta da palavra - mamute - é trissílaba e quebraria com a métrica, sendo preferível a optada por Andrade Muricy, em sua revisão.

GLOSSÁRIO:
Hirsuto: De pelos longos e duros.
Melena: Cabelos longos.
Jarrete: Nervo ou tendão dos quadrúpedes.
Marnel: Pântano.
Espavento: Espanto, susto; pompa.
Leviatã: Monstro do caos; na bíblia, criatura réptil ou aquática.
Ciclope: Na mitologia, monstro com um só olho.
Hiperbóreas: Do extremo norte da terra.
Regougo: Voz da raposa; ronco.
Agro: Acre, amargo, inclemente.
Estrepitoso: Que produz estrépito, portanto, um ruído muito forte.
Atroar: Fazer estremecer com um estrondo.
Noa: Na liturgia católica, hora canônica correspondente às três da tarde.

Alves de Faria (1871 - Maceió - 1899 - Maceió):

Bacharelado em  Direito pela Faculdade de Direito do Recife em 1891, chegou a obter o cargo de juiz em Sergipe, não o impedindo de escrever poesia e de participar de publicações literárias da época; aliás, foram os órgãos de imprensa o único meio pelo qual Alves Faria publicou, deixando toda a sua obra esparsa. Nefelibata assumido, o que, para a época, era correr sérios riscos relativos aos cargos públicos, defendia a prosa rimada, estilo sobre o qual também, segundo ele, era necessário um abraçar de certa rigidez parnasiana. Morreu jovem, aos 28 anos e três meses, a 25 de junho de 1899.

ABRINDO UM LIVRO

A - sombra geme aqui. Ruínas este soneto.
A - arcaria da frase é um esgarado momo
e sobre este papel erguem-se os versos como
velhos muros de pedra ou restos de esqueleto.

A imagem lembra um curso e triste cinamomo,
onde a hera da dor se enrosca ao tronco preto
e passeia através da quadra e do terceto
a saudade que reza, em religioso assomo.

Senta-se a mágoa sobre os escombros dispersos
do hemistíquio onde bate o coração dos versos,
e em derredor rasteja o verme dos gemidos.

E como um braço, amor, que no outro braço arrima,
cai em música estranha a rima sobre a rima,
num sonoro rumor de mármores partidos.

(Em Novidades, Rio, 05 de Março de 1891)


GLOSSÁRIO:
Esgarado: Neologismo derivado de esgarrão - ou seja, jogo popularesco. Os dois erres não convinham à musicalidade do poema.
Momo: Pequena farsa popular.
Hera: Plantas trepadeiras.
Cinamomo: Arvore caneleira.
Assomo: Manifestação, ocorrência.
Hemistíquio: Metade de um verso alexandrino.

BATRÁQUIO

À noite, ao astral palor das estrelas na altura,
ao coaxar das rãs monótono nos brejos,
sai vagaroso e triste, em corcovos cortejos,
o sapo, o vil batráquio, a imunda criatura!

Anfíbio, venenoso, ovíparo, a estatura
não lhe mede jamais seus íntimos desejos.
Tem despeito do céu! - e ulula uns vão arpejos
à toalha astral de crivo estrelejada e pura!

Tão baixo que ele o é! tão pequenino e imundo!
E olha e divide e anseia andar, mundo por mundo,
aos saltos bruscos por a constelada esfera!

Calcula a força e o grau do seu profundo gozo,
se de um salto pudesse, ele, tuberculoso!
cuspir, babar a sã poliestelar quimera!

1897 - Signo de Aquarius

(O Cenáculo, tomo IV, 1897, pág. 151)

GLOSSÁRIO:
Batráquio: Anuro: anfíbio caracterizado pela cabeça fundida ao corpo e pela ausência de cauda.
Palor: Palidez.
Coaxar: A voz das rãs e sapos.
Corcovos: Salto cujo movimento é baseado na curvatura do dorso.
Crivo: Objeto muito esburacado.

Ricardo de Lemos (1871 - Morretes - PR - 1932 - Curitiba):

Patrono da cadeira nº37 da Academia Paranaense de Letras, Ricardo de Lemos configurou-se num dos típicos casos de um poeta retraído, sustentando-se por meio de um trabalho público no Estado e, assim como vários outros poetas, no ofício jornalístico, não obstante, sendo um poeta aclamado na fase mais ortodoxa do movimento. Segundo Andrade Muricy, a poesia de Ricardo de Lemos "é de bom gosto e sentimento discreto". A parte essencial de sua obra continua dispersa.

DESLUMBRAMENTO

A Romário Martins

Sinto, através daquele olhar sereno,
Olhar de Cristo, piedoso e triste,
Num abraço, que é todo o meu veneno,
Nostalgias de azul que não existe.

E ele, que em pleno abrir de aurora, em pleno
Fulgor de sol ao próprio sol resiste,
Se me ilumine, é dum luar ameno,
Onde a mancha das nuvens não se aviste.

Angélica expressão das cousas mansas,
Por ele vejo e escuto, em doce enleio,
Rostos de mães e risos de crianças...

A Morte, quando esse astro se apagar,
Certo, ao coveiro há de dizer, eu creio:
- "Repara se inda há luz naquele olhar..."

(Em Breviário, ano I, nº1, Agosto de 1900, pág.21)

UM ANJO

Vai para um cemitério, as mãos em cruz
Sobre o gelado peito.
O pai, sozinho, sem chorar, conduz
O pequenino leito.

Rude aldeão que andava à chuva, ao frio,
Ele tinha também
Ânimo forte, espírito sadio
Como bem poucos têm.

Além disso não era a vez primeira
Que, cheio de conforto,
Ele levava à estância derradeira
Algum filhinho morto.

À noite, adoecera o camponês,
E a sua doce amiga
Perguntou-lhe o que tinha... - "Pois não vês?
Sinto grande fadiga...

O caixãozinho que eu levei ao ombro
De tarde, à luz suave do arrebol,
Pesava mais - disse ele com assombro -
Que vinte enxadas trabalhando ao sol!..."

(Rodrigo Júnior e Alcibíades Plaisant, Antologia Paranaense, Tomo I, Poesia, págs. 306-307)

GLOSSÁRIO:
Arrebol: Vermelhidão do nascer ou pôr-do-sol.


Caros leitores do Sacrário das Plangências, finda está aqui a parte nona deste estudo. Somente por adendo, digo que Andrade Muricy, em sua introdução, conta-nos que houve um grande problema com os familiares de alguns poetas no momento em que ele pediu os autógrafos-originais que, em alguns casos, eram os únicos rastros poéticos de certos autores. A sociedade, com o fácil esforço da difamação, conseguiu com que os Simbolistas, depois chamados de Nefelibatas, Decadentes (todos adjetivos encorporados ao estilo, em certo tom de provocação e de não-ofensa), fossem uma vergonha para muitas famílias, por terem sido de um estilo que evocava a transcendência, a perscrutação e até mesmo a queda da alma - tudo para não ficarem neste mundo. 
Muito disto pelo estilo ser considerado Satanista. A presença de Satã no estilo vem desde Baudelaire e, em muitos casos, não passou de pose ou uma evocação íntima ao pecado, pois quase todo o estilo estava profundamente ligado ao catolicismo - qual a própria imagem de Satã, como referido nos poemas.

Abraços,
Cardoso Tardelli

sábado, 21 de janeiro de 2012

A Nova Lista de Livros da Fuvest/Unicamp e a Desvalorização do Ensino da Literatura

Caros leitores do Sacrário das Plangências, esta postagem tem como objetivo observar alguns fatores sobre os quais andei divagando atualmente. Quem acompanha o blog com maior assiduidade já deve ter observado que faço críticas ao modo pelo qual é analisada a Arte Poética no mundo contemporâneo, ainda mais sabendo que, na maioria dos casos, o contato é iniciado na escola com os olhos fitos no Vestibular, que é uma instituição desgastada e que necessita de uma renovação para além dos métodos de lógica-exata em que tanto se baseiam. Portanto, em muitos casos, se os grandes vestibulares não tiverem uma atenção mínima com a Arte Poética, é muito provável que os alunos também pouco o terão. Não podemos nos esquecer também que, queiramos ou não, essa estrutura contemporânea do vestibular torna-o também  uma fonte de leitura e de informação para os jovens, inclusive sendo um balanceador sobre as opiniões de "o que deve ser lido ou não".

Há dois dias, dois dos maiores vestibulares do país - o da Fuvest e o da Unicamp - divulgaram a nova lista de livros para as suas provas de seleção, tendo essa lista uma duração de três anos. Ei-la:

Viagens na Minha TerraAlmeida Garrett  (1799-1854)
TilJosé de Alencar (1829-1877)
Memórias de um Sargento de MilíciasManuel Antônio de Almeida (1831-1861)
Memórias Póstumas de Brás Cubas Machado de Assis (1839-1908)
O Cortiço Aluísio Azevedo (1857-1913)
A Cidade e as Serras – Eça de Queirós (1845-1900)
Vidas Secas – Graciliano Ramos (1892-1953)
Capitães da Areia – Jorge Amado (1912-2001)
Sentimento do Mundo – Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

A grande surpresa foi a seleção de Almeida Garret, Romântico português que teve grande influência no movimento brasileiro. Não obstante, o grande desagrado sobre Garret foi que, em vez de selecionarem suas Folhas Caídas, que é o seu livro de poemas e que mais marcou o movimento brasiliano, selecionaram Viagens na Minha Terra, que longe passa de ser um livro ruim, mas que não toma o lugar de um dos livros que foram excluídos - a coletânea de poemas de Vinícius de Moraes, abrindo uma lacuna para o gênero poético.
Apesar da introdução do livro Sentimento do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade, o gênero poético fica, aos olhos da seleção da Fuvest e da Unicamp, um pormenor transfeito numa obrigação que é posta ao acaso da necessidade.

Novamente, excluem cerca de quarenta anos de poesia brasileira - a época Parnasiano-Simbolista - em favor de um pensamento Positivista e totalmente inclinado ao gênero da prosa, perdendo a oportunidade, por exemplo, de um óbvio estudo entre a figura de Cruz e Sousa, a abolição da escravatura, as teorias científicas da época, e se, de fato, uma lei tem o poder de mudar a mentalidade de um povo. Seria um tema para a segunda fase da Fuvest e facilmente encaixável no perfil da Unicamp.

Além de tudo isso, a exclusão de O Auto da Barca do Inferno não pode ser justificada somente pelo argumento de que a lista se baseia "no que os alunos conseguem ler". O livro é um clássico e diz a todos nós, e para os que não compreendem as palavras - há várias versões com glossário, além da extrema facilidade de se conseguir um dicionário atualmente, seja pelo meio físico ou por meio do computador. Algumas expressões ainda contemporâneas, como o uso de "todo mundo" (como em "afeta a todo mundo"), foram celebrizadas por Gil Vicente no Português, pois é um galicismo (derivada da língua francesa).

Outro ponto que me incomodou bastante é a redundância do uso de certos autores. Excluir Machado de Assis seria, de fato, um absurdo. Mas por que não trocar os romances Realistas dele por um de seus livros de contos? Ou até mesmo, numa substituição a José de Alencar, que entrou com o seu Til no lugar da velha Iracema, mostrando a face Romântica de nosso maior romancista, até hoje quase desconhecida por ser tão celebrada a face Realista?

Aliás, acerca do movimento Romântico, faço um adendo: por mais que Memórias de um Sargento de Milícias não seja, pelo método didático atual, considerado um livro estritamente Romântico, fora o seu autor, Manuel Antônio de Almeida, um Romântico típico da época, inclusive no modus-operandi da sua produção artística. Sendo assim, teríamos dois romances do mesmo período literário. Será que um livro de poemas da época, como a Lira dos Vinte Anos, de Álvares de Azevedo, ou até mesmo as  Espumas Flutuantes e Os Escravos, de Castro Alves, não caberiam mais no contexto de descobrimento de um movimento literário do que o intocável livro de Manuel Antônio de Almeida? De Álvares de Azevedo, poderia-se colocar na lista a peça Macário, cujas descrições da cidade de São Paulo seriam de grande serventia para uma interdisciplinaridade com Geografia e História. 

Em relação ao contemporâneo Capitães de Areia, de Jorge Amado, posso me dizer totalmente favorável à inclusão desse tipo de obra quando o tema de debate é o tempo em que fora escrita. Negar o alto aspecto de qualidade que há em alguns autores do Século XX seria de uma tremenda falha erudita - e aí entra o caso de Drummond também. Posta tal ideia, se um grande poeta brasileiro vivo como Ferreira Gullar entrasse no hall de análises, não seria absurdo algum e, inclusive, indagaria a leitura dos alunos pelo aspecto de contemporaneidade da obra.

Alguns me dirão que a poesia ou os livros antigos não foram incluídos de uma maneira mais abundante pela dificuldade de linguagem e consequente dificuldade de interpretação, além de argumentos como "nem todo Ensino Médio é igual". O grande fato é que as Humanidades estão perdendo espaço para as Ciências Exatas nos colégios e, por consequência, na preferência dos jovens; muito disso por culpa dos professores, que ensinam História, Literatura, enfim, as matérias de Humanidades com métodos, tabelas, estatísticas e tudo mais que uma Ciência Exata tem como predileção para o seu ensino.
Mas o grande ponto é que ninguém realmente tem a coragem de tirar os alunos da zona-de-conforto. Subestimando-lhes e dando-lhes a autorização para a hesitação ao conhecimento, cria-se um clima muito confortável para continuarem achando que nunca poderão ler um livro profundo ou entenderam a si mesmos, pois, afinal, a sociedade é assim mesmo e ninguém consegue e nem precisa ler isso. O princípio de subestimar uma mente é um dos mais hediondos que há: a pessoa realmente acredita que não conseguirá ou que não haverá utilidade para elevar-se nessa tal sociedade. O problema é que essa zona-de-conforto e de subestimação começa desde a infância, quando a alfabetização básica inicia-se, tornando uma inversão da situação negativa, quando no Ensino Médio, realmente difícil, mas não impossível, principalmente se houver organização entre todas as classes de trabalhadores que participam do processo, incluindo enérgica participação das secções governamentais.

Voltemos à lista: nove obras e tão somente uma do gênero poesia. Repito o que havia dito: apesar de discordar do peso do Vestibular sobre o ensino atualmente, essa instituição molda, na mente das pessoas, grande parte da visão sobre a cultura nacional e estrangeira. Inegavelmente, a lista dos próximos três anos mostrará uma cultura extremamente limitada e que calca sobre um só ramo, caminho cujos riscos não sabemos claramente. Mas um aspecto está muito claro: a Literatura está sendo desvalorizada pelos próprios Senhores Mandatários que deveriam valorizá-la; se acaso acham que jorram valor nas Letras com essa lista na qual a redundância e a escassez são as maiores características, de nada adianta botarem os livros-medalhões numa lista e jogarem nas provas perguntas para as quais as respostas não necessitam da leitura de uma linha sequer das obras solicitadas.

Abraços,
Cardoso Tardelli

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Sugestões de Leitura - Parte V - Clássicos

Caros leitores do Sacrário das Plangências, como em todo mês, faço uma seção de sugestões de leitura condizentes com os temas do blog. Nesta quinta parte, focarei as reedições de livros clássicos que se têm lançado, considerando um livro clássico aquele que já tem fincado o seu nome na literatura nacional ou mundial (bem sabemos que, no caso de livros em Português, a relação de "clássico mundial" torna-se muito mais difícil).

SUGESTÕES:

DANTE ALIGHIERI. Divina Comédia. Tradução de João Trentino Ziller. Ilustrações de Sandro Botticelli. Ateliê Editorial: São Paulo, 2011. 560 páginas.

Uma das obras de maior influência na cultura ocidental pós-medieval, reverberando em praticamente todos os estilos artísticos posteriores à sua escrita, a "Divina Comédia" aporta agora numa edição digna de sua magnificência. As ilustrações, finalmente postas num livro (foram somente encontradas na década de 1980, após séculos sem informações sobre a localização), fazem do livro - que por si só é um completo conjunto - uma amostra da Estética Poética em sua quintessência, da erudição em sua forma mais ampla e do espírito humano em um dos mais altos pontos que já atingiu.


WILLIAM BLAKE - Canções da Inocência e Canções da Experiência. Tradução de Gilberto Sorbini. Disal Editora: São Paulo, 2005. 157 páginas.
   
William Blake, um dos maiores poetas do Romantismo inglês, é visto aqui com as suas canções que relatam dois estados da alma que são expostos nas feridas da vida. Grande marco do movimento, ao lado de seu "Casamento do Céu e do Inferno", esse livro é de um Romantismo clássico, embebido dos parnasos antigos (ora, William Blake era um pintor e chegou a ilustrar a "Divina Comédia"), e assim como o resto do movimento Romântico inglês, fora considerado um precursor do início do distanciamento entre o poeta e o povo, apesar das constantes manifestações políticas presentes nos versos, representando a contemporânea  e tão quimera de dizer que o hermetismo, que é até pouco usado por Blake, é a ausência da perscrutação de uma sociedade e dos seres que nela perambulam.  
         
CASTRO ALVES - Espumas Flutuantes/ Os Escravos. Editora Martins Fontes: São Paulo, 2ª Edição, 2001. 396 páginas.
Se a poesia de Castro Alves não for considerada um clássico da literatura mundial, a cultura como um todo estará cometendo um grandíssimo erro. Dividida em duas claras feições, a poética do poeta baiano é de uma representatividade lírica magnificente tanto na fase de inspiração alicerçada na segunda fase do Romantismo, mas já dando claras evidências do apelo social, com grandes influências de Victor Hugo - fase de Espumas Flutuantes -, quanto na fase mais célebre, a de Os Escravos, e na qual discorre sobre os vários feitios da escravidão, rendendo-lhe o apelido de "Poeta dos Cativos". Clássico, sobretudo, porque a sua mensagem é mundial - e, acima de tudo, porque a escravidão ainda é uma nódoa na sociedade, a perambular atenta por fracas ideologias.

MACHADO DE ASSIS - Toda a Poesia de Machado de Assis. Editora Record: Rio de Janeiro, 2008. 756 páginas.
É sabido que Machado de Assis teve como porta para a sua eternidade nas Letras mundiais a sua prosa, que, no Brasil, continua insuperável. Várias edições de sua poesia vieram a lume durante o Século XX, mas sempre com o inevitável ponto de referência "O romancista, em Machado de Assis, cresceu tanto que anulou o poeta, que nunca fora gigantesco". A poesia de Machado, com evidentes tonalidades Românticas, tem qualidade irregular, mas altos méritos também. Composta em sua juventude, quando perambulava com Casimiro de Abreu (seu amigo de juventude e a quem dedicou sempre respeito e admiração) e outros grandes poetas do Romantismo, e quando era um grande participador da vida boêmia carioca, a sua poesia tem valor histórico e literário, pois são a transição do autor que "nunca fora gigantesco", mas que era considerado promissor, para o Machado de Assis reconhecido mundialmente.


Caros leitores do Sacrário das Plangências, haverão mais sugestões envolvendo somente edições de clássicos, que normalmente são divulgadas em jornais ou nas próprias revistas das livrarias. É inegável que, ao fazer uma seleção envolvendo quatro livros, os livros serão selecionados vagarosamente. Além de tudo, recuso-me a não selecionar livros brasileiros ou em língua portuguesa tão somente pelo fato de ter sido a nossa cultura moldada na antiga cultura europeia - isso não anula o feitio clássico de muitas obras escritas em Português.

Boa leitura!

Abraços,
Cardoso Tardelli

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Os Poemas Condenados de Baudelaire; Rimbaud e os Simbolismos

Caros leitores do Sacrário das Plangências, talvez seja de conhecimento de muitos a punição recebida por Charles Baudelaire (1821-1867) por ter incluído, em suas Flores do Mal, seis poemas que foram considerados de total ultraje à moral pública. Os poemas referidos são "Lesbos", "Mulheres Malditas - Delfina e Hipólita", "O Letes", "À que está sempre alegre", "As Jóias", "As Metamorfoses do Vampiro". A punição fora, além da retirada dos poemas das Flores do Mal, uma multa de trezentos francos a Baudelaire - e de cem francos a cada editor envolvido no processo de concepção do livro. Não muitos detalhes há de se dar no parágrafo introdutório sem ser o de que o acusador, Ernest Pinard, fora o mesmo que pusera em julgamento o Madame Bovary, de Gustave Flaubert (1821-1880). As traduções que serão usadas na postagem são de Ivan Junqueira, encontradas numa ótima edição da Nova Fronteira, para os poemas de Baudelaire, e de Ivo Barroso, numa edição esplêndida da Topbooks, para os poemas de Rimbaud.

(Na foto: Charles Baudelaire)

Os seis poemas, apesar de trazerem bases temáticas diferenciadas, têm como tema base a sexualidade (os mais assíduos leitores de Baudelaire sabem que eles retratam alguns celebres romances do autor, com metáforas ou não, o poema "O Letes", por exemplo, retrata o ciclo amoroso do poeta com Jeanne Duval). O que talvez a corte que julgou os poemas de Baudelaire não esperava é que, ao adiar a publicação dos cantos, não somente fizeram-nos maiores, mas também criaram uma ânsia por uma estética jocosa, até às vezes deselegante (exatamente com esse intuito), cujo auge se fez na figura de Arthur Rimbaud (1854-1891). Acerca do Letes de Baudelaire, para esclarecer um pouco o que é o "Rio Letes", basta dizer que é um dos rios do Inferno de Hades, no qual corre a água do total esquecimento. O tema foi muito usado pelos Românticos, principalmente por Keats.

O LETES - Trad: Ivan Junqueira

Vem ao meu peito, ó surda alma ferina,
Tigre adorado, de ares indolentes,
Quero aos meus dedos mergulhar frementes
Na áspera lã de tua espessa crina;

Em tuas saias sepultar bem junto
De teu perfume a fronte dolorida,
E respirar, como uma flor ferida,
O suave odor de meu amor defunto.

Quero dormir o tempo que me sobre!
Num sono que ao da morte se confunde
Que o meu carinho sem remorso inunde
Teu corpo luzidio como o cobre.

Para engolir-me a lágrima que escorre
O abismo de teu leito nada iguala;
O esquecimento por teus lábios fala
E a água do Letes nos teus lábios corre.

O meu destino, agora meu delírio,
Hei de seguir como um predestinado;
Mártir submisso, ingênuo condenado,
Cujo fervor atiça o seu martírio,

Sugarei, afogando o ódio malsão,
Do mágico nepentes o conteúdo
Nos bicos desse colo pontiagudo,
Onde jamais pulsou um coração.


Apesar de ser clara a evocação da lubricidade na estrofe final e no trecho "Em tuas saias sepultar bem junto", e mesmo vendo com os olhos do Século XIX, não creio que esse poema tenha a evocação maldosa de muitos das Flores do Mal. Aliás, em muitos casos, os poemas proibidos nada mais são que cantos que demonstram a evolução de certos temas na mente de Baudelaire, desaguando em vários clássicos que encontramos no livro.
Sabe-se que Victor Hugo (1802-1885), não obstante o espanto da sociedade, agraciou Baudelaire com os méritos de grande poeta e de revolucionário, alegando também que era uma grande honra para um poeta ser punido pela corte de Napoleão III; Flaubert também elogiara o polêmico poeta, dizendo que as Flores do Mal haviam renovado o Romantismo - e bem sabemos que o movimento Simbolista, de fato, é um subsequente do Romântico. As polêmicas dos poemas de Baudelaire, portanto, nada mais foram que uma amostra mais aberta do que o próprio movimento Romântico já havia feito: o amor carnal fora representado pelos Românticos de uma forma sutil, até pelo brasileiro Castro Alves (1847-1871), cujas Espumas Flutuantes, de 1870, exalam um Romantismo erótico.

Seguindo a linha de que os poemas proibidos "são uma exposição clara do que fora o velho Romantismo", transcrevo "As Metamorfoses do Vampiro":

AS METAMORFOSES DO VAMPIRO - Trad: Ivan Junqueira

E no entanto a mulher, com lábios de framboesa,
Coleando qual serpente ao pé da lenha acesa,
E o seio a comprimir sob o aço do espartilho,
Dizia, a voz imersa em bálsamo e tomilho:
- "A boca úmida eu tenho e trago em mim a ciência
De no fundo de um leito afogar a consciência.
As lágrimas eu seco em meus seios triunfantes,
E os velhos faço rir com o riso dos infantes.
Sou como, a quem me vê sem véus a imagem nua,
As estrelas, o sol, o firmamento e a lua!
Tão douta na volúpia eu sou, queridos sábios,
Quando um homem sufoco à borda dos meus lábios,
Ou quando o seio oferto ao dente que o mordisca,
Ingênua ou libertina, apática ou arisca,
Que sobre tais coxins macios e envolventes
Perder-se-iam por mim os anjos impotentes!"

Quando após me sugar dos ossos a medula,
Para ela me volvei já lânguido e sem gula
À procura de um beijo, uma outra eu vi então
Em cujo ventre o pus se unia à podridão!
Os dois olhos fechei em trêmula agonia,
E ao reabri-los depois , à plena luz do dia,
A meu lado, em lugar do manequim altivo,
No qual julguei ter visto a cor do sangue vivo,
Pendiam do esqueleto uns farrapos poeirentos,
Cujo gripo lembrava a voz dos cata-ventos
Ou de uma tabuleta à ponta de uma lança,
Que nas noites de inverno ao vento se balança."

A imagem do vampiro causou um encanto aos Românticos franceses e, com certeza, essa metáfora feita por Baudelaire é uma reverberação desse encantamento medonho e lúbrico - e que é tão comum em todas as histórias de vampiros. Apesar da clara imagem dúbia em "perder-se-iam por mim os anjos impotentes", pois  tudo referia-se à atividade sexual, o poema nada mais explora do que o ser diante da exaustão do amor e do próprio ser - dubiamente.

Baudelaire nunca fora um santo, ao contrário, sempre perambulou entre a ironia e a serenidade louca. Mas quando Rimbaud aportou em Paris, na esperança de atingir a fama por meio da poesia, e o consequente perdão materno por ter fugido de casa, qualquer perspectiva de poesia ultrajante, como se dizia, mudou. Se Rimbaud se apresentou com o seu Barco Ébrio, um poema magnífico, solene e com grandes tendências parnasianas, logo se demonstrou um poeta satírico, apesar de melancólico e sem rumo. Em muitos casos, não há retrato mais fiel da Paris ensanguentada por Napoleão III, já doente, do que os versos do jovem poeta que parou de escrever para não se lembrar dos tormentos vividos em sua época de escritor.
Vejamos um dos casos jocosos da poesia rimbaudiana:

ORAÇÃO DA TARDE - Trad: Ivo Barroso

Vivo sentado como um anjo no barbeiro,
Empunhando um caneco ornado a caneluras;
Hipogástrio e pescoço arcados, um grosseiro
Cachimbo o espaço a inflar de tênues urdiduras.

Qual e um velho pombal o cálido esterqueiro,
Mil sonhos dentro de mim são brandas queimaduras.
E o triste coração às vezes é um sobreiro
Sangrando de ouro escuro e jovem nas nervuras.

Afogo com cuidado os sonhos, e depois
De ter bebido uns trinta ou bem quarenta chopes,
Oculto, satisfaço o meu aperto amargo:

Doce como o Senhor do cedro e dos hissopes,
Eu mijo para os céus cinzentos, alto e largo,
Com a plena aprovação dos curvos girassóis.

Ou podemos citar um outro caso, no qual a tendência anti-monarquista de Rimbaud, explorada por meio de uma poesia erótico-sarcástica, torna-se mais evidente:

LAMENTO DO VELHO MONARQUISTA - Trad: Ivo Barroso

Ao Sr. Henri Perrin, Jornalista Republicano

......................................... Haveis mentido!
Pelo meu fêmur, sim haveis mentido, ó besta
Apóstolo! Quereis fazer-nos sem sentido,
Arruinados? Pelar a nossa calva testa?
Mas eu, eu tenho dois gravados e torcidos!

No colégio sois quem suando o dia inteiro
Vê a ganha a escorrer pelo pescoço nédio;
Sois do dentista a máscara; no picadeiro
O cavalo que baba no bornal de tédio,
E me quereis levar quarent'anos de assédio!

Meu fêmur, ei-lo aqui! Eis o meu fêmur duro!
É bem este que após quarent'anos, tratantes,
Nesta velha cadeira de carvalho escuro,
Reteve da madeira a marca edificante.
E quando vir agora o teu órgão impuro
Nas mãos daqueles teus, palhaços, assinantes,
Vou retorcer esse órgão mole, sem tutanos,
..............................................................
E farei retocar, para os dias futuros,
O fêmur trabalhado ao fim de quarent'anos.

Segundo Ivo Barroso, "nestes versos, dirigidos a Henri Perrin, redator-chefe do Nord-Est, jornal republicano fundado em 1871 em Charleville, R. "assume" o papel de um monarquista que protesta contra a publicação. A palavra fêmur, aqui enfaticamente usada, corresponde a pênis e há um jogo com a polissemia de órgão (jornal/genital) (...)".

 (Na foto: Arthur Rimbaud)

O movimento Simbolista foi um deságue do Romantismo, numa junção com a estética-plástica parnasiana, sendo, em praticamente todos os lugares por onde passou, o movimento precursor do Modernismo. Ao proibirem as seis poesias de Baudelaire, multarem-no, e tacharem o estilo como "Decadente" (que nasceu já morto) ou Nefelibata (que anda nas nuvens), em oposição aos estilos que beijavam as involuções do Positivismo, criaram o clima propício para os vários estilos de poesia que se desenvolveram no Simbolismo, entre os quais estão, segundo Edmund Wilson, a sério-estética (Baudelaire, Verlaine, Mallarmé, etc) e a coloquial-irônica (Tristan Corbierè e Jules Laforgue). Camilo Pessanha, autor de Clepsidra, foi um dos poucos que conseguiram juntar as duas estéticas simbolistas numa só obra.
Rimbaud está classificado na sério-estética, mesmo porque desta seção pode-se abrir dois ramos: uma de inspiração mallarmaica, cujo alicerce é construtivista e hermético; e outro de inspiração verlaineana, cuja tendência neo-romântica é evidente. Baudelaire está presente no ramo sério-estético de maneira distinta, mas é o vulto maior dos artistas do auge do Simbolismo. 
Mas, afinal, Rimbaud seria classificado como? Pela grande presença de sua biografia na obra, a resposta mais fácil seria o segundo ramo da família sério-estética do Simbolismo, mas como as vastas informações de sua vida não esclarecem a totalidade de sua mensagem poética, deparamo-nos com o hermetismo de influência mallarmaica, portanto, com a obscuridade sugestiva; consequentemente, Rimbaud fora das duas linhas da sério-estético.

Para fins de esclarecimento, em 1949, a Corte de Cassação da França decidiu retirar as punições impostas a Baudelaire, numa época em que as suas obras já estavam em domínio público e em que já se eram conhecidos os  seis cantos nomeados como "Poemas Condenados". Em mais um caso, a arte pervence a efemeridade das perspectivas falazes de uma sociedade cega.

Abraços,
Cardoso Tardelli

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Um Descobrimento dos Simbolistas Brasileiros - Parte VIII

Caros leitores do Sacrário das Plangências, nesta seção do estudo Um Descobrimento dos Simbolistas Brasileiros, passaremos por alguns autores que basicamente escreviam em língua francesa (algo comum para a época, assim como poetas contemporâneos brasileiros que escrevem somente em Inglês), além de outros grandes poetas que tiveram grande importância na divulgação, inclusive social, do movimento. Para não fugir do descobrimento dos simbolistas, mas também não beirar o absurdo da erudição forçada, os poetas que só escrevem em Francês terão a biografia relatada, mas não as obras.

POETAS SIMBOLISTAS:

João Itibirê da Cunha (1870 - Cerro Azul, PR - 1953 - Rio de Janeiro):

Poeta e compositor musical, com dez anos foi estudar na Bélgica. Após um Ensino Regular com célebres personalidades europeias (os então futuros Rei Alberto e cardeal Merry del Val), matriculou-se na Universidade de Bruxelas, instituição na qual doutorou-se em Direito, além de ter sido colega de Maurice Maeterlinck, um dramaturgo, poeta e ensaísta Simbolista, considerado um dos maiores do movimento mundial. Durante a estadia na Europa, participou de publicações decididamente Simbolistas, publicando um volume totalmente em Francês - Préludes - sendo apoiado e elogiado pelas célebres mentes da época, inclusive por Maeterlink e do português Eugênio de Castro, um dos maiores Simbolistas lusitanos. Com vinte e três anos, portanto, em 1893, voltou para o Brasil, indo para Curitiba, mudando-se logo para Assunção, no Paraguai, como secretário da legação. Em 1898 abandonou a diplomacia em definitivo para dedicar-se ao jornalismo, chegando a ser o redator solitário do jornal L'Étolie du Sud, órgão da colônia francesa. Fora João Itibirê um exímio crítico musical, além de ter sido um essencial personagem nas letras brasileiras pelo fato de ter trazido muitas novidades europeias à nossa plaga, constituindo a sua imagem à de uma fonte de novidades aos Simbolistas brasilianos. Como compositor, deixou peças para piano, e canto e piano. Fora um membro fundador da Academia Brasileira de Música.

Pethion de Vilar (1870 - Salvador - 1924 - Salvador):

Versificador de nível espetacular, apesar de desdenhoso para com o rigor de técnica poética e dos cuidados estritos com os pormenores do engenho, foi um dos maiores sonetistas do movimento, talvez por ter, em seu alicerce cultural, tanto o movimento brasileiro e francês quanto o português, movimento último que para muitos Simbolistas da primeira geração era desconhecido. Com certa tendência parnasiana, como era comum a muitos da primeira geração, tinha um grande poder descritivista. Apesar de ter obtido uma grande fama nos meios literários durante a sua vida, teve os seus poemas, em grande parte, publicados somente por meio de jornais, sendo, quatro anos após a sua morte, reunidos nas "Poesias Selecionadas", publicadas em Lisboa.

SONETO PARA O SÉCULO XX

Dizem que a arte de Goethe é uma arte anacrônica
Coeva do mamute e das larvas primárias;
Que Homero não passou de uma abantesma trágica
Vislumbrada através de névoas milenárias;

Dizem que todos nós lembramos uns ridículos
Idólatras senis de coisas funerárias,
E andamos a colher - incuráveis maníacos -
Em cinzas hibernais, flores imaginárias;

Dizem que a Poesia há muito está cadáver;
Que a rima faz cismar num guizo de funâmbulo,
Monótono, a tinir no trampolim do Verso...

Que importa? se bendita, essa loucura mística
Entorna em nossa Mágoa o leite do papáver
E abre à nossa volúpia o azul de outro Universo?
1899

(Em Poesias Escolhidas)


GLOSSÁRIO:
Coeva: Contemporânea.
Abantesma: Fantasma.
Papáver: Família das plantas das quais são extraídos a dormideira, planta que produz o Ópio.


MARINHA

Desce a Noite enrolada em brumas hibernais...
Trágica solidão, vago instante sombrio,
Em que, tonto de medo, o olhar não sabe mais
Onde começa o mar e onde acaba o navio.

Nem o arfar de uma vaga: o mar parece um rio
De óleo; oxidado o céu de nuvens colossais,
Num zimbório de chumbo acaçapado e frio,
Escondendo no bojo a alma dos temporais.

Nem das águas no espelho o reflexo de um astro...
Apenas o farol, no vértice do mastro,
Rubra a pupila, a arder, dentro de uma garoa...

E lá vai o navio, espectral, lento e lento,
Como um negro vampiro, enorme e sonolento,
Pairando sobre um caos de tênebras, à toa.

1900

(Em Poesias Escolhidas)

GLOSSÁRIO:
Zimbório: Parte superior, curva, que concluem a uma cúpula de uma grande construção.
Acaçapar: Esconder.
Bojo: Saliência arredondada; Fig: âmago, cerne.
Tênebra: Treva.

Freitas Vale - Jacques d'Avray  (1870 - Alegrete - RS - 1951 - São Paulo):

(Na foto: Vila Kyrial)


Autor com poucas obras em Português, Jacques d'Avray fora um dos grandes alicerces do movimento Simbolista paulistano. Cursando a Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, tinha como residência a "Vila Kyrial", casa em que se reuniam vários escritores, fossem eles do movimento Simbolista ou não. A descrição de Andrade Muricy para a "Vila Kyrial" é a seguinte: "Instalada e decorada à maneira fin-de-siécle, cada sala dedicada ao nome dum grande poeta simbolista, Jacques d'Avray nela recebia todos os artistas e literatos de merecimento de passagem por São Paulo ou ali residentes. Ir à "Vila Kyrial" era peregrinação quase ritual para a elite da inteligência, fossem quais fossem as suas tendências estéticas ou político-artísticas". Freitas Vale foi um grande amigo de Alphonsus de Guimaraens, tendo este lhe dedicado o livro Câmara-Ardente, de 1899. Enfim, apesar de um poeta de médio peso no Simbolismo, socialmente fora Freitas Vale - ou Jacques d'Avray - um elemento essencial para a construção do movimento Modernista Paulistano, pois a "Vila Kyrial" era a vila dos nefelibatas e dos então futuros modernos. Sobre "Vila Kyrial", que foi demolida em 1961, há um relativamente recente livro de Márcia Camargos (com a grafia de "Villa", qual a da época), lançado pela editora Senac.

Francisca Júlia (1871 - Eldorado - SP - 1920 - São Paulo):


Notadamente mais conhecida pela a sua fase parnasianista, dado que não caminha conjuntamente com a qualidade das duas poéticas que encontramos na obra de Francisca Júlia, foi notoriamente uma das figuras mais célebres das nossas letras durante a transição do Século XIX para o XX. Como notou Andrade Muricy, a produção Simbolista de Francisca Júlia foi posta a lume pelos jornais da época antes de Cruz e Sousa lançar os livros que são dados como a inauguração do movimento no Brasil (Missal e Broquéis, de 1893) e no mesmo ano, 1890, em que Alphonsus de Guimaraens publicava na imprensa paulistana os seus primeiros textos, que formariam a base de seus primeiros livros. O Parnasianismo de Francisca Júlia, apesar de ótimo e, em muitos textos, superior ao da célebre tríade, configura-se numa "ilha de sua produção poética", como defendeu Andrade Muricy, pois, fora os poucos textos parnasianos que foram alçados ao céu, o resto de sua produção tinha grande tendência mística, moral e sugestiva. Para uma análise mais profunda do panorama de Francisca Júlia na literatura brasileira, clique aqui para ler o post O Caso de Francisca Júlia em Nossas Letras.


NOTURNO

Pesa o silêncio sobre a terra. Por extenso
Caminho, passo a passo, o cortejo funéreo
Se arrasta em direção ao negro cemitério...
À frente, um vulto agita a caçoula de incenso.

E o cortejo caminha. Os cantos do saltério
Ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso;
Uma mulher enxuga as lágrimas ao lenço;
Chora no ar o rumor de um misticismo aéreo.

Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha
Da noite se ilumina ao resplendor da lua...
Uma estrige soluça; a folhagem farfalha...

E enquanto paira no ar esse rumor de calmas
Noites, acima dele, em silêncio, flutua
O lausperene mudo e súplice das almas.

(Em Poesias, de 1961)

GLOSSÁRIO:
Saltério: Hinários de Israel, ou seja, os salmos.
Estrige: No caso, coruja.
Lausperene: Adoração permanente ao Santíssimo Sacramento.

DE JOELHOS

A Santa Teresa

Reza de manso... Toda de roxo,
A vista no teto presa,
Como que imita a tristeza
Daquele círio trêmulo e frouxo...

E assim, mostrando todo o desgosto
Que sobre sua alma pesa,
Ela reza, reza, reza,
As mãos erguidas, pálido o rosto...

O rosto pálido, as mãos erguidas,
O olhar choroso e profundo,
Parece estar no Outro-Mundo
De outros mistérios e de outras vidas...

Implora ao Cristo, seu Casto Esposo,
Numa prece ou num transporte,
O termo final da Morte,
Para descanso, para repouso...

Salmos doridos, cantos aéreos,
Melodiosos gorjeios
Roçam-lhe os ouvidos, cheios
De misticismos e de mistérios...

Reza de manso, reza de manso,
Implorando ao Casto Esposo
A Morte para repouso,
Para sossego, para descanso

D'alma e corpo, que se consomem,
Num desânimo profundo,
Ante as misérias do Mundo,
Ante as misérias tão baixas do homem!

Quanta tristeza, quanto desgosto
Mostra n'alma aberta e franca,
Quando fica, branca, branca,
As mãos erguidas, pálido o rosto...

O rosto pálido, as mãos erguidas,
O olhar choroso e profundo,
Parece estar no Outro-Mundo
De outros mistérios e de outras vidas...

(Em Poesias, de 1961)


MUDEZ*

Já rumores não há, não há; calou-se
Tudo. Um silêncio deleitoso e morno
Vai-se espalhando em torno
Às folhagens tranquilas do pomar.

Torna-se o vento cada vez mais doce...
Silêncio... Ouve-se apenas o gemido
De um pequenino pássaro perdido
Que ainda espaneja as suas asas no ar.

Ouve-me, amiga, este é o silêncio, o grande
Silêncio feito só de sombra e calma,
Onde, às vezes, noss'alma,
Penetrada de mágoas e de dor,
Se dilata, se expande,
E seus segredos íntimos mergulha...
Prolonga-se a mudez: nenhuma bulha;
Já se não ouve o mínimo rumor.

Esta é a mudez, esta é a mudez que fala
(Não aos ouvidos, não, porque os ouvidos
Não conseguem ouvir estes gemidos
Que ela derrama, à noite, sobre nós)
À alma de quem se embala
Numa saudade mística e tranquila...
Nossa alma apenas é que pode ouvi-la
E que consegue perceber-lhe a voz.

Escuta a queixa tácita e celeste
Que este silêncio fala a ti, tão triste...
E hás de lembrar o dia em que tu viste
Perto de ti, pela primeira vez,

Alguém a quem disseste
Uma frase de amor, de amor... ó louca!
E que, no entanto, só mostrou na boca
A mais brutal e irônica mudez!

(Em Poesias, 1961. É um dos casos do Simbolismo de F. Júlia datado de 1890)

* Acerca de "Mudez", podemos falar que mesmo Mário de Andrade, que não era adepto do movimento Simbolista e tampouco do Parnasiano, escreveu, após lê-la, que tratava-se "talvez de uma das melhores poesias da literatura brasileira".


Caros leitores do Sacrário das Plangências, finda está aqui a oitava parte do estudo. A cada seção, mais evidente torna-se o fato de que um movimento literário não se faz somente de grandes poetas, mas de figuras que na sociedade se expandem, levando o movimento e a cultura afora. O motivo pelo qual o Simbolismo "não vingou" em tese seria explicado pelo surgimento dos Modernistas, muitos vindos do movimento nefelibata ou minimamente influenciados por ele, mas o erro da tese se inicia a partir do momento em que digo que o movimento Simbolista foi falho: se nasceu da cultura fina e introspectiva, e desaguou no movimento que recebeu o laurel de todo um povo, teve seu Signo traduzido de forma ou outra ao coração dos seres - e o Símbolo do mistério nunca morreu e nem há de.

Abraços,
Cardoso Tardelli