quinta-feira, 17 de novembro de 2011

O Caso de Francisca Júlia no Panorama de nossas Letras

Estimados leitores do Sacrário das Plangências, quebrando a sequência do estudo "Um Descobrimento do Simbolismo Brasileiro", mas ainda perambulando nos movimentos literários da época, esta postagem tem como objetivo explorar o curioso caso de Francisca Júlia Da Silva (1871-1920) em nossas letras e de seu inexplicável esquecimento - escancarado após uma edição das obras completas organizada por Péricles Eugênio da Silva Ramos, em 1961, e que servirá de alicerce para uma amostragem das várias fases da "Musa", como era chamada.

A sua obra, sem ser a poesia completa, constitui-se em Mármores (1895), Livros da Infância (1899), Esfinges (1903), Alma Infantil, em contribuição com o seu irmão Júlio César da Silva (1905), além de uma segunda edição de Esfinges, publicada em 1920. Em Esfinges, Francisca Júlia retirou sete composições de Mármores, mas acrescentou quatorze. Na segunda edição de Esfinges, mais poemas foram incluídos.

(Foto: Francisca Júlia, divulgado na "Santos Ilustrada", em 25 de Março de 1899)

Conhecida por seu parnasianismo, Francisca Júlia obteve um reconhecimento do público e da mídia em meados do final do Século XIX e início do Século XX que, para uma mulher, era evidentemente incomum. Não à toa, ao publicar o seu primeiro poema, a descrença de que os versos realmente viriam de uma mão feminina foi imediata. O poema em questão era "Paisagem", e o comentarista Artur Azevedo (o comentário foi feito em 1895). Até mesmo o trabalhadores do jornal em que fora publicado o poema, A Semana, cismados ficaram da origem do poema.

No entanto, com a publicação de Mármores, em 1895, qualquer dúvida de gênero foi findada e, de imediato, Francisca Júlia figurava, em qualidade poética, ao lado da intocável tríade Parnasiana (Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac). Em seu primeiro livro, Francisca Júlia já conseguira uma fama incomum a alguém que pouco havia publicado, sendo louvada, mesmo em seu parnasianismo, pelos Simbolistas da "Padaria Espiritual", no Ceará (movimento literário e social importantíssimo, dentro do qual surgiram grandes poetas do Simbolismo, como Lívio Barreto - 1870 - 1895 - e Lopes Filho - 1868 - 1900) e, posteriormente, pelo movimento Simbolista como um todo.

Esses Mármores foram, para a poesia brasileira, um marco inegável. Era a segunda vez que uma mulher conseguia, na literatura, uma visualização grandiosa ao lado dos homens (a primeira fora ainda no Romantismo com a poetisa, contista e jornalista Narcisa Amália - 1856 - 1924 -, a cujas honras intelectuais da época equivaleram, de certa forma, até mesmo aos grandes poetas da época, como Castro Alves e Fagundes Varela), e o grande entusiasmo que se fez sobre o nome de Francisca Júlia também não a deixou alheia às críticas, como se fazia - felizmente - a qualquer poeta.

Por tais fatos, será que o relembramento destas duas poetisas, tanto Narcisa Amália quanto Francisca Júlia, não seria quase obrigatório pelos movimentos que defendem os direitos das mulheres? De nada adianta o brado contemporâneo sobre uma mulher envolta em cultura se não há uma base historiográfica de quais foram as primeiras brasileiras a obterem uma base cultural comparável àquela quase indestrutível masculina.

Apesar de elogios vários, a poetisa de Mármores foi criticada por ter, em seus versos iniciais, uma influência clara e evidente - beirando o plágio inconsciente - de poetas como Bilac e como Leconte de Lisle (1819-1894), importante parnasiano francês e cujos Poemas Bárbaros (em tradução literal) ecoaram de forma razoável aqui. Dos poemas que perduraram na edição de sua poesia-reunida, ainda lançada quando era viva (lançada em Esfinges, 1903), há um que em muito bate com os vários sonetos sobre Centauras feitos por José-Maria de Heredia (1842-1905), poeta cubano-francês, mas que fez da França sua casa -e seu grande alicerce estético para realizar seu parnasianismo.

DANÇA DE CENTAURAS

Patas dianteiras no ar, bocas livres dos freios,
Nuas, em grita, em ludo, entrecruzando em lanças,
Ei-las, garbosas vêm, na evolução das danças
Rudes, pompeando à luz a brancura dos seios.

A noite escuta, fulge o luar, gemem as franças;
Mil centauras a rir, em lutas e torneios,
Galopam livres, vão e vêm, os peitos cheios
De ar, o cabelo solto ao léu das auras mansas.

Empalidece o luar, a noite cai, madruga...
A dança hípica para e logo atroa o espaço
O galope infernal das centauras em fuga:

É que, longe, ao clarão do luar que empalidece,
Enorme, aceso o olhar, bravo, do heroico braço
Pendente a clava argiva, Hércules aparece...

Glossário (feito por Péricles Eugênio da Silva Ramos):

"Patas, freios: Francisca Júlia, logo no 1º verso, dá a ideia de cavalo. A princípio, os centauros não possuíam patas dianteiras, mas pés. Depois, adquiriram essas patas (...).
Ludo: Folguedo, divertimento.
Polpeando: Ostentando (algo capaz de envaidecer)
Franças: Os ramos mais altos das árvores.
Auras: Brisas
Clava argiva: segundo Apolodoro, Hércules talhava sua clava (nota do blogger: arma curta, em forma de pera), em Nêmea, que ficava em Argos. Argivo também quer dizer grego, em geral"

O parnasianismo dos Mármores foi, em muito, superior ao da famosa tríade brasileira, não obstante. Para muitos, porque "a arte pela arte" de Francisca Júlia encaixava-se perfeitamente com o que já fora praticado na França (talvez uma grande contradição da crítica brasileira, pois esta, ao rebaixar o Simbolismo ao nada, dissera que o Brasil devia parar de querer saber o que ocorre primeiro em Paris para depois ter conhecimento do que escrever. A ideia é de Araripe Júnior, segundo maior crítico da época, e que abraçou a poesia de F. Júlia, lançada depois dos Broqueis e do Missal de Cruz e Sousa (1893), livros para os quais a crítica se referia. Porém, o próprio parnasianismo de Francisca Júlia passava muito além do mero descritivismo típico dos parnasianos célebres do Brasil, quando em suas famas regidas. Vejamos o poema a seguir, também de Mármores:


INVERNO

A João Luso

Outrora, quanta vida e amor nestas formosas
Ribas! Quão verde e fresca esta planície, quando,
Debatendo-se no ar, os pássaros, em bando,
O ar enchiam de sons e queixas misteriosas.

Tudo era queixa e amor. As árvores copiosas
Mexiam-se, de manso, ao resfôlego brando
Da brisa que passava em tudo derramando
O perfume sutil dos cravos e das rosas...

Mas veio o inverno; e vida e amor foram-se em breve...
O ar se encheu de rumor e de uivos desolados...
As árvores do campo, enroupadas de neve,

Sob o látego atroz da invernia que corta,
São esqueletos que, de braços levantados,
Vão pedindo socorro à primavera morta.

GLOSSÁRIO:
Invernia: Inverno rigoroso.

Vemos aqui um típico caso de "parnaso-simbolismo", pois, não chegando a ser um Simbolismo ao modo de Emiliano Perneta ou Cruz e Sousa, chega a ter uma sutilidade na sugestão e na apresentação de imagens, que são, num primeiro momento, jubilosas, cromáticas, e noutro, vagarosas, doloridas, quase incolores (na divisão exata dos quartetos e tercetos), tendo, num verso derradeiro a lembrança saudosa daqueles momentos de cor e alegria descritos, não com apatia, nos quartetos. Sendo, portanto, de um descritivismo-sugestivo, indo em um caminho totalmente contrário ao da "arte pela arte", mesmo que técnicas parnasianas, como enjambement evidentes (segundo verso da primeira estrofe), estejam ainda em evidência.

Sabendo-se que em Esfinges, lançado em 1903, foram acrescentados 14 poemas e excluídos sete dos originais dos Mármores, que viriam fazer parte das Poesias de Francisca Júlia, lançado em 1961, mostrarei uma comparação da poesia mística e realmente Simbolista da poetisa paulista, apesar desta última as características descritas.

CREPÚSCULO

A Maria Clara da Cunha Santos

Todas as cousas têm o aspecto vago e mudo
Como se as envolvesse uma bruma de incenso;
No alto, uma nuvem, só, num nastro largo e extenso,
Precinta do céu calmo a cariz do veludo.

Tudo: o campo, a montanha, o alto rochedo agudo
Se esfuma numa suave água-tinta... e, suspenso,
Espalhando-se no ar, como um nevoeiro denso,
Um tom neuro de cinza empoeirando tudo.

Nest'hora, muita vez, sinto um mole cansaço,
Como que o ar me falta e a força se me esgota...
Som de Ângelus, moroso, a rolar pelo espaço...

Neste letargo que, pouco a pouco, me invade,
Avulta e cresce dentro em mim essa remota
Sombra da minha Dor e da minha Saudade.

GLOSSÁRIO (Péricles Eugênio da Silva Ramos):

"Nastro: Fita estreita.
Preceita: Circunda.
Cariz: Aspecto, aparência atmosférica. O vocábulo é normalmente masculino."


Outro poema de Esfinges, de uma típica esfera Simbolista, mas cuja conclusão relativamente alentada foge do comum de muitos poemas - até mesmo do que foi a própria vida da poetisa.

À NOITE

Eis-me a pensar, enquanto a noite envolve a terra;
Olhos fitos no vácuo, a amiga pena em pouso,
Eis-me, pois, a pensar... De antro em antro, de serra
Em serra, ecoa, longo, um réquiem doloroso.

No alto uma estrela triste as pálpebras descerra,
Lançando, noite dentro, o claro olhar piedoso.
A alma das sombras dorme; e pelos ares erra
Um mórbido langor de calma e de repouso.

Em noite escura assim, de repouso e de calma,
É que a alma vive e a dor exulta, ambas unidas,
A alma cheia de dor, a dor tão cheia de alma...

É que a alma se abandona ao sabor dos enganos,
Antegozando já quimeras pressentidas
Que mais tarde hão de vir com o decorrer dos anos.


GLOSSÁRIO:
Mórbido: Segundo P. Eugênio da Silva Ramos, dual é o sentido da palavra neste poema. Pode ser tanto "suave (como em belas artes) ou doentio".
Exultar: Sentir grande prazer; ter grande alegria.

A evidência de qualidade poética em Francisca Júlia é, ao mesmo tempo, inegável e inacreditável, pois todo este estro foi deixado de lado quando, por incrível que pareça, a sua poesia completa veio a lume, em 1961. Mas, talvez, não foi falta de qualidade que ocasionou o olvido de F. Júlia, foi uma desconfiguração da própria análise e escrita poética pelos próprios poetas - o que configurou numa confusão ao leitor, que já não sabia se lia uma ciência, uma prosa, uma mera epifania não desenvolvida, num deságue dos movimentos pós-modernos, ou uma arte que merecia uma estante somente sua nas livrarias.

Tendo a sua obra alcançado um parnasianismo e um Simbolismo de qualidade, que mereceram destaque e respeito de ambas escolas, que eram rivais, além de ter também Francisca Júlia publicado Lieds (poesia típica alemã), numa tentativa de adaptá-lo ao clima brasileiro, e também traduzido poemas de Goethe, Victor Hugo e Heinrich Heine (entre outras traduções), fica-me ainda em dúvida sobre a legitimidade do esquecimento quase que completo de F. Júlia (não fossem a rua Francisca Júlia, localizada no Alto de Santana, São Paulo (SP) e seu túmulo emérito no Cemitério do Araçá, na quadra 6-A, no terreno perpétuo nº9, que contém a belíssima escultura "A Musa Impassível", de Vítor Brecheret, sobre os despojos da poetisa, por ser campa-fechada, talvez o nome dela mais desconhecido ainda seria; aliás, sobre esse túmulo, no lugar da escultura de mármore está uma réplica de bronze, a pedido das famílias de Francisca Júlia e Vítor Brecheret. A original está na Pinacoteca do Estado). E digo ainda a palavra "legitimidade" de uma maneira vaga, pois é ilegítimo o esquecimento da arte, entendendo esta como um desenvolvimento do ser e de seus sentimentos no espaço e tempo.

(Foto: Escultura 'Musa Impassível' de Vítor Brecheret, já restaurada e na Pinacoteca)

Muitas vezes, num questionamento externo sobre a questão do esquecimento de Francisca Júlia, muitas pessoas falaram "sempre foi assim" ou "a vida é assim". Talvez esteja aí um dos grandes erros de nosso contemporâneo tempo. Ora, a nossa percepção do tempo hoje não é a mesma daquela de cem anos atrás, nem o próprio "contemporâneo esquecimento" pode ser arrastado a um tempo em que nós não vivemos. Toda essa nuvem de conformismo e coma cria nos seres certa sensação de que vivemos um tempo eterno e intranscedente - O Tempo de Todos - o que é inverídico. Por mais que muitas das emoções do ser humano mantenham-se as mesmas - ora, nós ainda temos o porte espiritual humano -, o modo com o qual lidamos com elas difere de tempo em tempo. Ou seja, o esquecimento de Francisca Júlia nem é consequência de um inexorável abraçar da história, nem de uma evolução do ser.

Se as Editoras não mais publicaram, é porque não mais se falou nas escolas, por consequência, em Vestibulares (pois é este o triste panorama do ensino brasileiro). E tampouco em universidades é tateada a poética da paulista, pois, como movimento, o Parnasianismo já tem seus maiores símbolos - e o Simbolismo típico - dois mártires do desdém da crítica da época (Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens). Mas, ao mesmo tempo que me parece didaticamente aceitável, parece-me limitado para a formação de um "ser que é ser" (parafraseando Cruz e Sousa, em seu "Sorriso Interior"). O menor tempo para as humanidades nas escolas é um mal - mas o tempo dado para o Modernismo em Literatura excede a real perspectiva de importância e qualidade literária do movimento, quase que excluindo outros casos anteriores ao movimento - evidentemente não sendo o caso de Machado de Assis.

Portanto, Francisca Júlia configura-se em uma figura importante que, no início do século XX era igual, ou maior, do que a tríade parnasiana, tendo fama equivalente (tanto é que muitas das fontes sobre ela estão em Jornais, que sempre publicavam entrevistas com a poetisa). Para P. Eugênio da Silva Ramos, talvez o fato dela ter publicado poucos poemas tenha prejudicado a fixação da imagem dela na Literatura Brasileira. Com os seus sessenta e poucos poemas originais - sem contar as traduções - ela já vai além dos quarenta e oito poemas de Camilo Pessanha (1867-1926), por exemplo, que constavam em sua Clepsidra, lançada em 1920, único livro seu e que, não obstante do pequeno tamanho, marcou história na literatura portuguesa.

Como já antes disse em uma postagem anterior, há um benéfico movimento das editoras para que os clássicos sejam re-lançados, inclusive passando pelas obras completas de Olavo Bilac, Cruz e Sousa, Antônio Nobre (simbolista português), Camilo Pessanha, entre outros. Talvez seja a hora de re-lançar a obra de Francisca Júlia, a quem cujo nome sempre é evocado numa andança na Pinacoteca, por exemplo, ao avistar a "Musa Impassível", de Vítor Brecheret, que é quase que incompreensível se separada da obra da poetisa, pois muito faz referência ao dueto de sonetos "Musa Impassível" e ao "Dança das Centauras". A esperar algum movimento das editoras.

Abraços, Cardoso Tardelli

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