quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O Poema Social de Cesário Verde

Caros leitores do Sacrário das Plangências, o poeta Cesário Verde (1855-1886) nunca havia sido trabalhado no blogue, e este post tem um intento de demonstrá-lo em sua face menos conhecida (aliás, na face menos conhecida do Simbolismo): a do protesto social. Não obstante às comparações que possam fazer com a Poesia Realista, já que pouca coisa é mais desse estilo que o protesto social (apesar de ainda manterem um certo distanciamento do povo em suas grandes obras, ou minimamente descrevendo-o de forma excêntrica e bizarra), Cesário Verde, principalmente com o poema Desastre, publicado em 1875, no Jornal "O Porto".

(Foto: Cesário Verde)

Em carta para Silva Pinto, o escritor que reuniu os poemas de Cesário afim de lançar o histórico "Livro de Cesário Verde" (1887), o poeta, acerca da obra, escreveu: "A poesia que eu hoje te mando é a minha última maneira. Vês por ela que eu não desprezo de modo algum o coração, que quando desprezado não deixa brotar nenhuma obra de arte. Mas o que eu desejo é aliar ao lirismo a ideia de justiça." Provavelmente, Cesário se queixava, quando dizia, de certa forma defensiva, que não desprezava o coração, das críticas que recebera de seu histórico poema Esplêndida, recebido com críticas ferozes, frias, num pleno ataque de incompreensão da crônica literária da época.

O poema, talvez um dos mais desconhecidos do autor, e também dos mais diferentes, apresenta um Cesário que "abandona o discurso irônico", procurando "expressar e revestir-se de sentimentos nobres, para educar sentimental e moralmente o leitor", como definiu Mário Higa, organizador dos "Poemas Reunidos de Cesário Verde", da Ateliê Editorial (2010). O curioso é que o objetivo moral de um poema ia de encontro com as "leis-baudelairianas", se assim podemos falar, seguidas também por Cesário Verde (apesar do português ter sido um poeta extremamente singelo). Baudelaire sempre negou a função moral da poesia, dizendo que o poeta tem de escrever um poema pelo simples prazer de fazê-lo, sem se preocupar em ser um ablutor dos ramos da sociedade.

Mas, enfim, eis o poema referido: 

DESASTRE


Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,
Soltando fundos ais e trêmulos queixumes;
Caíra dum andaime e dera com o peito,
Pesada e secamente, em cima duns tapumes.



A brisa que balouça as árvores das praças,
Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,
Trazendo em sangue negro os membros ensopados.



Um preto, que sustinha o peso dum varal,
Chorava ao murmurar-lhe: "Homem não desfaleça!"
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça,
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.



Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes
Corriam char-à-bancs cheios de passageiros 
E ouviam-se canções e estalos de chicotes,
Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.



Viam-se os quarteirões da Baixa: um bom poeta,
A rir e a conversar numa cervejaria,
Gritava para alguns: "Que cena tão faceta!
Reparem! Que episódio!" Ele já não gemia.



Findara honradamente. As lutas, afinal, 
Deixavam repousar essa criança escrava, 
E a gente da província, atônita, exclamava:
"Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!"



Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;
Mornas essências vêm duma perfumaria,
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,
Numa travessa escura em que não entra o dia!



Um fidalgote brada a duas prostitutas
"Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!"
Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas
E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.



Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer,
De bagas de suor tinha uma vida cheia;
Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,
Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.



Depois da sesta, um pouco estonteado e fraco
Sentira a exalação da tarde abafadiça;
Quebravam-lhe o corpinho o fumo do tabaco
E o fato remendado e sujo da caliça.



Gastara o seu salário - oito vinténs ou menos -,
Ao longe o mar, que abismo! e o sol, que labareda!
"Os vultos, lá em baixo, oh! como são pequenos!"
E estremeceu, rolou nas atrações da queda.



O mísero a doença, as privações cruéis
Soubera repelir - ataques desumanos!
Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos
Andara a apregoar diários de dez-réis.



Anoitecia então. O féretro sinistro
Cruzou com um coupé seguido dum correio,
E um democrata disse: "Aonde irás, ministro!
Comprar um eleitor? Adormecer num seio?"



E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,
- Conservador, que esmaga o povo com impostos -,
Mandava arremessar - que gozo! estar solteiro! -
Os filhos naturais à roda dos expostos...



Mas não, não pode ser... Deite-se um grande véu...
De resto, a dignidade e a corrupção... que sonhos!
Todos os figurões cortejam-no risonhos
E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.



E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa,
Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas:
Isto porque o patrão negou-lhes a licença,
O inverno estava à porta e as obras atrasadas.



E antes, ao soletrar a narração do fato, 
Vinda numa local hipócrita e ligeira, 
Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefato:
"Morreu!? Pois não caísse! Alguma bebedeira!"




É impressionante como a "guerra-de-classes", o desdém de uma elite referida (e quando dá reparo, cogita negativamente as possibilidades circundantes ao desastre - sempre negando a humanidade do humilde), a própria cena de grande cidade, com o seu cotidiano praticamente inatingível, mesmo com a morte relatada pelo eu-lírico, enfim, como todo o poema Desastre nos remete ao nosso próprio tempo, à nossa própria vivência nas grandes cidades, à convivência com a desigualdade, fazendo com que o poema transforme-se num um claro caso de atemporalidade devido ao tom contemporâneo que toma. E, talvez aí, acima de seus méritos e de seu destaque dentro da obra do autor - já que não é o melhor poema de Cesário, claramente -, resida a referência maior sobre o social poema Desastre.

Abraços,
Cardoso Tardelli

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

"Esquecimento" e "Sorriso Interior", de Cruz e Sousa

Caros leitores do Sacrário das Plangências, esta postagem fugirá um pouco da tradição do blog - pois, em vez de análises e artigos, postarei somente dois poemas de Cruz e Sousa, o nosso maior Simbolista. Para o referencial não ficar nulo, falarei um pouco dos dois livros em que são presentes as poesias.

Quando pensamos em algum poema famoso de Cruz e Sousa, ou nos vêm à mente a Antífona - de "Broquéis" (1893) - ou a estrofe repleta de aliterações de Violões que Choram... - de "Faróis" (1900). Apesar de ser o nosso mais célebre representante da escola Simbolista no Brasil, ao lado de Alphonsus de Guimaraens (a visão é de celebridade, não necessariamente referente à qualidade; venho tentando neste blog revelar alguns grandes Simbolistas brasileiros que, se não melhores que os dois, não merecem o esquecimento que recebem), traduzido para várias línguas e muitas vezes demonstrado em exposições de Poesia Luso-Brasileira, não tem a sua obra lida, tampouco poemas que mereciam ter uma atenção realmente grande devidamente estudados. Em minha opinião, tanto em "Faróis" quanto em "Últimos Sonetos" (1905) estão os dois poemas mais representativos, em verso, de Cruz e Sousa. Representativos porque o Simbolismo ortodoxo é posto de lado para ser destacado um Poeta maior, atemporal. Como escreveu Ivan Teixeira em introdução presente na edição fac-similar de "Faróis" (Ateliê Editorial, 1998), Cruz e Sousa, no auge de sua obra (leia-se: "Evocações" (1898) "Faróis" e "Últimos Sonetos"), não se restringia e tampouco cabia na égide Simbolista - pois o seu estro atingiu proporções muito maiores.

Eis dois poemas que muito falam muito do que discorri no parágrafo:

Esquecimento - Cruz e Sousa (em Faróis)

Ó Estrelas tranquilas, esquecidas
No seio das Esferas,
Velhos bilhões de lágrimas, de vidas,
Refulgentes Quimeras.

Astros que recordais infâncias de ouro,
Castidades serenas,
Irradiações de mágico tesouro,
Aromas de açucenas.

Rosas de luz do céu resplandecente
Ó Estrelas divinas,
Sereias brancas da região do Oriente
Ó Visões peregrinas!

Aves de ninhos de frouxéis de prata
Que cantais no Infinito
As Letras da Canção intemerata
Do Mistério bendito.

Turíbulos de graça e encantamento
Das sidérias umbelas,
Desvendai-me as Mansões do Esquecimento
Radiantes sentinelas.

 Dizei que palidez de mortos lírios
Há por estas estradas
E se terminam todos os martírios
Nas brumas encantadas.

Se nessas brumas encantadas choram
Os anseios da Terra,
Se os lírios mortos que há por lá se auroram
De púrpuras de guerra.

Se as que há por cá titânicas cegueiras,
Atordoadas vitórias
Embebedam os seres nas poncheiras
E no gozo das glórias!

O céu é o berço das estrelas brancas
Que dormem de cansaço...
E das almas olímpicas e francas
O ridente regaço...

Só ele sabe, o claro céu tranqüilo
Dos grandes resplendores,
Qual é das almas o eternal sigilo,
Qual o cunho das cores.

Só ele sabe, o céu das quint'essências,
O Esquecimento ignoto
Que tudo envolve nas letais diluências
De um ocaso remoto...

O Esquecimento é flor, sutil, celeste,
De palidez risonha.
A alma das coisas languemente veste
De um véu, como quem sonha.

Tudo no esquecimento se adelgaça...
E nas zonas de tudo
Na candura de tudo, extremo, passa
Certo mistério mudo.

Como que o coração fica cantando
Porque, trêmulo, esquece,
Vivendo a vida de quem vai sonhando
E no sonho estremece...

Como que o coração fica sorrindo
De um modo grave e triste,
Languidamente a meditar, sentindo
Que o esquecimento existe.

Sentindo que um encanto etéreo e mago,
Mas um lívido encanto,
Põe nos semblantes um luar mais vago,
Enche tudo de pranto.

Que um concerto de suplicas de magoa,
De martírios secretos,
Vai os olhos tornando rasos d’água
E turvando os objetos...

Que um soluço cruel, desesperado
Na garganta rebenta...
Enquanto o Esquecimento alucinado
Move a sombra nevoenta!

Ó rio roxo e triste, ó rio morto,
Ó rio roxo, amargo...
Rio de vãs melancolias de Horto
Caídas do céu largo!

Rio do esquecimento tenebroso,
Amargamente frio,
Amargamente sepulcral, lutuoso,
Amargamente rio!

Quanta dor nessas ondas que tu levas,
Nessas ondas que arrastas,
Quanto suplício nessas tuas trevas,
Quantas lágrimas castas!

Ó meu verso, ó meu verso, ó meu orgulho,
Meu tormento e meu vinho,
Minha sagrada embriaguez e arrulho
De aves formando ninho.

Verso que me acompanhas no Perigo
Como lança preclara,
Que este peito defende do inimigo
Por estrada tão rara!

O meu verso, ó meu verso soluçante,
Meu segredo e meu guia,
Tem dó de mim lá no supremo instante
Da suprema agonia.

Não te esqueças de mim, meu verso insano,
Meu verso solitário,
Minha terra, meu céu, meu vasto oceano,
Meu templo, meu sacrário.

Embora o esquecimento vão dissolva
Tudo, sempre, no mundo,
Verso! que ao menos o meu ser se envolva
No teu amor profundo!

Esquecer e andar entre destroços
Que além se multiplicam,
Sem reparar na lividez dos ossos
Nem nas cinzas que ficam...

É caminhar por entre pesadelos,
Sonâmbulo perfeito,
Coberto de nevoeiros e de gelos,
Com certa ânsia no peito.

Esquecer é não ter lágrimas puras,
Nem asas para beijos
Que voem procurando sepulturas
E queixas e desejos!

Esquecimento! eclipse de horas mortas.
Relógio mudo, incerto,
Casa vazia... de cerradas portas,
Grande vácuo, deserto.

Cinza que cai nas almas, que as consome,
Que apaga toda a flama,
Infinito crepúsculo sem nome,
Voz morta a voz que a chama.

Harpa da noite, irmã do Imponderável,
De sons langues e enfermos,
Que Deus com o seu mistério formidável
Faz calar pelos ermos.

Solidão de uma plaga extrema e nua,
Onde trágica e densa
Chora seus lírios virginais a lua
Lividamente imensa.

Silêncio dos silêncios sugestivos,
Grito sem eco, eterno
Sudário dos Azuis contemplativos,
Florescência do Inferno.

Esquecimento! Fluido estranho, de ânsias,
De negra majestade,
Soluço nebuloso das Distâncias
Enchendo a Eternidade!


O soneto "Sorriso Interior", na época de sua divulgação, foi um dos mais celebrados pelo grupo Simbolista carioca, segundo Nestor Vítor (a edição original de "Últimos Sonetos" tem comentários para as obras essenciais). Acerca desse soneto, o crítico e poeta Tasso da Silveira escreveu uma longa análise, julgando-o "talvez o mais belo de nosso idioma", e concluindo que "o ser que é ser" é a síntese do que queriam ser os simbolistas, envolvidos sempre em sentimentos de transcendência, escapismo, e perscrutações profundas.

Sorriso Interior - Cruz e Sousa (em Últimos Sonetos)

O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo esse brasão augusto
Do grande amor, da nobre fé tranqüila.

Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem ânsias e sem custo...
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe essa glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!

Abraços,
Cardoso Tardelli

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O Caso do Desconhecido Edgar Mata em nossas Letras

Caros leitores do Sacrário das Plangências, nesta postagem pretendo discorrer sobre um dos Simbolistas brasileiros que detinha, em sua poesia, uma das maiores qualidades líricas do país, mas que, por um incidente familiar, teve grande parte de sua queimada - restando somente dela os códices, recuperados em livro por Cilene Cunha de Souza, na edição Obra Poética de Edgard Mata (1978), da editora Tempo Brasileiro. Alcoólatra, dizia ter na morte a sua aspiração suprema, talvez por ser, como relataram os seus amigos mais próximos, em relatos obtidos por Andrade Muricy, uma pessoa "profundamente triste".

(Na foto: Edgar da Mata Machado) 
Considerado por José Alfonso Mendonça Azevedo "o nosso Verlaine", Edgar Mata (1878-1907) foi, ao lado de Alphonsus de Guimaraens, o destaque do movimento Simbolista mineiro. O poeta, que nascera em Ouro Preto, tinha em sua poesia a presença constante da "solidão dos ermos" mineiros e dos "poentes prolongados" da região, assim como o poeta de Ismália. A influência de Cruz e Sousa se faz presente de forma constante - como o foi em todo o nosso Simbolismo -, mas não retirando, como exemplificou Andrade Muricy em seu Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, o feitio "de um verdadeiro poeta, de personalidade definida".

Como figura pública, colaborou na revista Lótus e no paulistano Jornal do Comércio. Participou do grupo literário "Jardineiros do Ideal", cuja importância no estado de Minas foi significativa, sendo reconhecido tal valor por Nestor Vítor - amigo mais próximo de Cruz e Sousa -, quando, em 1900, Nestor chamou o grupo para proferir uma palestra sobre o mais significativo poeta de nosso Simbolismo.

Acerca do incidente que pôs fim à grande parte da obra de Edgar Mata (no texto a grafia é Edgard) e que eu me referi no início deste tópico, Cilene Cunha de Souza nos relata um depoimento definitivo sobre o caso:  "Em 7 de Agosto de 1921, no Jornal Minas Gerais, Mario de Lima escreveu:
'O que Edgard Mata publicou constitui a menor fração de sua obra. Grande parte desta perdeu-se, infelizmente. Perdeu-se - inadvertidamente arrojados por uma veneranda senhora da família do poeta - às chamas de um fogão, dezenas de preciosos originais de seus versos, quase todos inéditos, como ele certa vez me contou, despreocupadamente, como se se tratasse da coisa mais natural do mundo'."

Apesar da escassez de sua obra, o seu nome chegou até o alto escalão do movimento Modernista, sendo ele admirado, entre outros, por Manuel Bandeira e pelo mineiro Carlos Drummond de Andrade (em Panorama do Movimento Simbolista). Poemas como "Estalactite" e "Lembro-me desse misterioso Poente..." marcaram profundamente gerações de leitores,  mesmo com a publicação limitada a panoramas e coletâneas sobre o movimento Simbolista. Na ocasião de sua morte, fora homenageado por Mariana Higina com o soneto "Saudade" - uma carinhosa relembrança à dolorosa e belíssima "Estalactite" do poeta. Salvou-o a tradição oral que havia em Minas Gerais, pois os seus poemas passaram de boca à boca por intermédio da declamação; sem tal tradição, muito provavelmente os códices não bastariam para que a memória de Edgar Mata, mesmo que capengamente, tivesse ainda brilho.

Transcrevo-lhes alguns poemas deste fabuloso poeta, sobre o qual o nosso reconhecimento ainda precisa ser maior e mais bem apurado - já que o período em que escrevera e em que ainda a sua poesia viveu plenamente (entre 1896-1920) parece-nos ainda como um elo perdido de nossa Literatura, tamanho foco dado a Semana de Arte Moderna e em seus artistas. Reparem como a pontuação de Edgar Mata é escassa (o que restou de sua obra foi transcrito pelas irmãs do poeta. Não se sabe se elas preservaram em totalidade a pontuação original do texto ou se o texto encontrado nos códices é cheio de gralhas gramaticais; sobre a veracidade ou não dessa característica da poesia de Edgar Mata, um parente do poeta - e também bardo - escreveu, em 1916, que "estas suas poesias (...), como se vê, não estão bem pontuadas. Edgar sempre usou de uma pontuação muito simples, mas não tão escassa como esta"); no Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, Andrade Muricy chegou a incluir alguns pontos e vírgulas no texto para que se chegasse a um padrão temático e textual.

POEMAS DE EDGAR MATA

OUVI-ME, IRMÃOS

Aos que me entendem

Ouvi-me, Irmãos: eu sou o mais tristonho
Habitador das Trapas e Conventos;
Trago um burel em que se escondem bentos,
Sagrados breves de um solene sonho.

Todo o meu ser em contrições deponho
Num grande altar, ante uns perfis nevoentos;
Nem mesmo sabe o meu olhar bisonho
Se altar de sonhos ou desalentos...

Seu que na Terra ando cantando à Lua...
Que as portas se abrem sepulcrais dos poentes,
Por onde, em brumas, a visão flutua.

No grande oceano eu já vislumbro escolhos,
Quando eu cerrar, agonizante, os dentes,
Ouvi-me, Irmãos: vinde fechar-me os olhos.

ESTALACTITE



A gota vagarosa,
Infiltrada no dorso hirsuto da montanha,
Atravessa da gruta a abóbada porosa
E forma lentamente incrustação estranha.

Também na alma humana
A lágrima cruel, caindo dia a dia,
A lágrima que gera a negra dor insana
Forma a Estalactite enorme da agonia.



ENFERMO


Enfermo. . . e os olhos pálidos descerra
Tão fatigados e tão cismadores,
Que uma visão de sonolências erra
A pressagiar misteriosas dores.

As faces têm esbatidas cores
Do luar de Agosto num país de serra. . .
Há no sorriso que um lamento encerra
Um poema ignoto de saudade e amores.

Tudo é sereno neste estranho enfermo
E no fulgor do seu olhar tristonho
Sentem-se as velhas nostalgias do Ermo.

Fala. . . e a palavra é tão solene e mansa
Que penso que anda o derradeiro Sonho
A povoar-lhe as solidões da Esp'rança.


FÉRETRO DO SONHO

Passa um féretro leve, carregado
Por borboletas brancas como os lírios;
Da luz dos pirilampos - áureos círios -
Vai o pequeno esquife iluminado.

A lua chora um pranto magoado,
Pranto talvez de siderais martírios
- Monja do eterno claustro dos Empíreos,
Monja que traz o coração roxeado.

E o esquife passa. E nele, morto, dorme
Um sonho meu, um sonho multiforme,
Que sucumbiu nos gelos do Nirvana.

Amortalhado por neblinas vagas,
Vai-se elevando às luminosas plagas,
Longe, bem longe da Paixão humana.

LEMBRO-ME DESSE MISTERIOSO POENTE...

Lembro-me desse misterioso poente
Quando meus olhos sobre os teus poisados
Tinham presságios de uma Dor latente
E as agonias dos que são amados.

E a tarde morre sonolenta e fria
Como morreste de saudade e mágoas
E a lua triste como a Nostalgia
Chora na branca quietação das águas.

CANÇÃO

Ao cair da tarde, pelos montes quedos,
Alma de Nirvana soluçando mágoas,
Vou ouvindo os tristes, vesperais segredos
Que pelas ravinas vão dizendo as águas.

Serras à distância, desmaiando as cores
Num delíquio manso de quem vai morrendo...
Chora o Outono e há muito não brotam flores,
Caem folhas mortas amarelecendo...

Quanta dor esparsa pela etérea altura!
Que soluço imenso no infinito vaga!
Morre o sol cansado; sonhadora e pura
Sobe a Lua, a monja da cerúlea Plaga.

Ah! pelo crepúsculo, tenho poentes n'Alma
Roxos de saudade que me dilacera.
Nem o amor eterno que o Soluço acalma,
Nem  uma esperança que me fale - Espera -

E o teu rosto surge para mais magoar-me
No horizonte antigo da saudade extrema...
Tu, que nunca e nunca poderás amar-me,
Tu, a nota branca desse meu poema.

Pela merencória evocação dorida
Desse sentimento que me traz magoado
Sinto-te a meu lado, virginal, vestida
De cetins e rendas para o meu noivado.

Lá nos céus distantes, lá nos céus benditos,
Altar-mor da grande Catedral dos Sonhos,
Tudo se prepara por estranhos ritos,
Filha, para os nossos Esponsais risonhos.

E os teus olhos negros, Siderais, dolentes,
Repousando em meus aniquilados olhos,
São faróis acesos, são faróis ardentes
Clareando mares e afastando escolhos.

Falas-me baixinho como que em segredo
Do País do Sonho, de Quimera e luzes.
Eu te escuto as vozes, mas do meu degredo,
Só contemplo esguios os perfis das cruzes.

Sinto-te o perfume do cabelo umbroso,
Florestal aroma que me vem dos longes
Da montanha adusta onde, ao luar formoso,
Como ascetas vagam legendários monges.

Os teus lábios feitos de ideais orientes,
Das manhãs de Maio, das manhãs radiosas,
Vêm poisas agora sobre os meus dolentes
Lábios, onde há cores vesperais, saudosas.

E eu sempre à espera de que sobre a nave
Venha o Padre para me dizer - é tua -
Na floresta escura já se escuta uma ave,
No horizonte imenso vai morrendo a Lua...


Caso vocês tenham ficado curiosos sobre o poema escrito por Mariana Higina, em homenagem a Edgar Mata, ei-lo:

SAUDADE - MARIANA HIGINA

Hoje, a estalactite enorme da agonia
Já não te oprime o peito e não te pesa n'alma:
Recuperaste a fé, recuperaste a calma,
A sorte te sorriu, ao menos neste dia.

Aqui viveste, mas teu coração sentia
Uma amargura atroz, dessas que nada acalma,
Eras poeta, eras moço, e não quiseste a Palma,
E o espírito exilado a Deus voltar queria.

E a lágrima de sangue, a lágrima cruel
Que em ti se irregelou, a lágrima de fel
Que assim te fez morrer na flor da mocidade,

Em nosso coração agora, lentamente,
Há de ir formando, triste e dolorosamente,
- A estalactite enorme da saudade.

Abraços,
Cardoso Tardelli

sábado, 24 de novembro de 2012

Sugestões de Leitura - Parte VIII

Caros leitores do Sacrário das Plangências, dando continuidade à série de "Sugestões de Leitura", eis que lhes sugiro um livro de prosa francesa e dois de poesia - sendo um alemão e um brasileiro, todos com edições atualizadas. Ei-los:

JORIS-KARL HUYSMANS - Às Avessas. Trad. José Paulo Paes. Editora Penguin - Companhia das Letras. Primeira Edição, 2011, São Paulo. 351 páginas.

Huysmans se configurou numa das maiores figuras do Decadismo Francês. Em Às Avessas, Huysmans, afastado, finalmente, do Naturalismo liderado por Zola, escreve, de certa forma, uma bíblia dos arquétipos dândis e decadentistas que haviam em Paris, em pleno clima "fim do século" (vide o caso real de uma tartaruga com o seu casco pintado a ouro) - tudo espelhado no único personagem da obra - Des Esseintes - cujas posturas aristocráticas, artificialistas (como antítese à postura naturalista) serviam, de certa forma, para um escapismo do mundo que se formava na época - cada vez mais cientificista, ao mesmo tempo cada vez mais moralista, envolta num niilismo fatal.



RAUL DE LEONI - Luz Mediterrânea e outros poemas. Org. Pedro Lira. Editora Topbooks, 2000, 180 páginas. 
Raul de Leoni pertente à época entre o enfraquecimento do Simbolismo Ortodoxo e o início do Modernismo; uma época em que poderia-se optar por uma poesia de revolução estética ou de conservadorismo; poderia-se optar por alta influência do Parnasianismo ou do Simbolismo. E é nessa época de indefinição que Raul de Leoni se destaca (assim como, por exemplo, Augusto dos Anjos). Salvo "pelo frêmito da herança Simbolista", como definiu Franklyn de Oliveira, a poesia Leonina esbanja sentimento e uma sensação constante da "beleza poente" - tão comum no Decadentismo -, destacando-se, principalmente, pelos seus sonetos - que, tendo a chave-de-ouro (que não é pecado algum), esbanjam imagens clássicas mescladas com pungentes sensações.


STEFAN GEORGE - Crepúsculo (bilíngue). Seleção, ensaio e tradução: Eduardo de Campos Valadares. Ed. Iluminuras, 2012. São Paulo, 240 páginas.

Esta edição, que é a segunda segunda da tradução de Eduardo de Campos Valadares, esbanja qualidade em todos os pontos possíveis (talvez só no ponto gráfico poderia ser melhor), tanto que, em crítica, tem sido elogiada de maneira unânime. Stefan George, maior Simbolista alemão, um dos três maiores Simbolistas da história, segundo o francês Roger Bastide (os outros são Stéphane Mallarmé e o nosso Cruz e Sousa), obteve influência em vários ramos artísticos e políticos (como se pode ver neste post) e, além disso tudo, escreveu em sua obra verdadeiros clássicos da poesia mundial, como "A Palavra Ilude - e Some..." e "O Homem e o Druida".  Por tudo o que significa, e pela qualidade da tradução (convenhamos que a Língua Alemã é muito diferente da Portuguesa; o método de tradução está expresso na seção "A Voz e seus Ecos"), este livro não somente é necessário aos amantes do Simbolismo - mas aos amantes da poesia geral.


Caros leitores, finda está aqui a sétima parte desta série. Boa leitura!
Abraços,
Cardoso Tardelli

Stefan George, o maior Simbolista Alemão, e o Dodecafonismo

Caros leitores do Sacrário das Plangências, a postagem de hoje refere-se ao maior poeta Simbolista da Alemanha - Stefan George (1868-1933) - à qual influência agradecem os movimentos Dodecafônico, na música, e Modernista, na Poesia (Rainer Maria Rilke, Yeats, por exemplo), não limitando-se, porém, a sua influência aos âmbitos da arte - vide a tentativa do estado Nazista de utilizar a imagem de Stefan em prol do novo estado, plenamente negado pelo poeta; além desse fato, que, aliás, não afetou a imagem do poeta, um dos discípulos de Stefan George, Graf von Stauffenberg, praticou um dos atentados mais conhecidos contra Hitler, em 1944, conhecido como "Atentado de 20 de Julho".

Lembremos que, segundo o estudioso francês Roger Bastide, Stefan George estava na tríade simbolista ao lado do francês Stéphane Mallarmé (com quem conviveu em sua juventude) e do brasileiro Cruz e Sousa. Tanto o francês quanto o brasileiro obtiveram influências além do parnaso - vide a representativa imagem que Cruz e Sousa deixou de uma sociedade que, apesar de viver "sem escravidão", ainda tinha alicerçada em seus meios culturais, científicos e laborais o escravismo - desaguando o preconceito étnico.

Talvez o peso cultural de Stefan George fosse tão forte a consequência natural de sua poesia era atingir todos os ramos da vivência, inexoravelmente. Mesmo praticando um verso aristocrático, breve e sugestivo, como era típico do estilo, a fama do poeta de "Hyperion" só cresceu com o passar dos anos. Como julgou Eduardo de Campos Valadares, tradutor da atual edição de "Crepúsculo" (Editora Iluminuras), reunião das poesias de Stefan George, a poesia do maior Simbolista alemão "se destaca por sua atualidade e transcendência, manifestas na escolha de temas universais. Entre outros, cabe mencionar o sentimento de perda e o perigo persistente que ronda a humanidade".

Mas, talvez, a mais curiosa influência dele, como já citado fugazmente, fora na música - e numa revolução musical. Poeta melodioso, de rimas e aliterações espalhadas por todos os versos de maneira não singular, influenciou o compositor austríaco Arnold Schoenberg (1874-1951) a criar o Dodecafonismo - um sistema atonal que, apesar de ter, posteriormente, algumas regras, cultuou, em seu início, o uso livre dos doze semi tons da escala. A obra "Opus XIV/I" nada mais é que o poema "Nem grato a ti devo me curvar" musicado. Assim como a "Opus XV" - que é o Livro dos Jardins Suspensos musicado.

Eis o Opus XV - Livro dos Jardins Suspensos:

E  longo poema musicado neste Opus XV, em tradução de Eduardo de Campos Valadares (em "Crepúsculo", editora Iluminiras, 2012) :

Canções - Stefan George

I

Onde a folhagem é proteção
E a neve finos flocos de luz -
Soam ecos de lamentação -
A boca de barro do dragão
Cospe raios e a fonte reluz -
Fora o regato agora murmura:
O arbusto arde em inanição - 
Projeta na água sua alvura.

II

Neste éden repetido
Mata alterna chão florido
Átrio - muro colorido.
Cegonhas iscas capturam
lago onde peixes cintilam -
Montes de aves como mato
Em cimas dos cimos trinam
E os juncos ao sol murmuram -
Mas meu sonho busca o inato.

III

Como iniciante entrei em teu recinto
Nenhuma surpresa antes tinha tido -
Nenhum desejo até ver-te consinto.
Vê nas mãos jovens as marcas com graça -
Elege-me servo em todo sentido
E serenamente recebe e abraça
Quem tropeça ainda em tal labirinto.

IV

Com meus lábios imóveis a arder
Percebo aonde levou meu ardor:
A um domínio de imenso esplendor.
Talvez sem saber fugas conceber -
E algo através das grades a me espreitar
Pus-me logo de joelhos sem pudor
Como fosse me buscar ou acenar.

V

Dizei-me qual das veredas
Ela hoje irá percorrer -
Para que macias sedas
Na mais rica arca alcance -
Rosa e violeta entrance -
Meu sorriso possa ver -
E também os pés descanse.

VI

Toda obra me causa exaustão.
Invoco-te com a pretensão -
De intuir nova conversação -
O trabalho e o ganho o sim e o não -
Apenas isso é afirmação
E o pranto pois a imagem não se doma -
Que na escuridão mais bela assoma -
Quando o dia claro entra em ação.

VII

Esperança e medo em mim se alternam -
Minha voz se transforma em gemido -
Uma saudade tal qual prurido
Que me deixa insone na agonia
Que em meu leito lágrimas se internam
Que recuso qualquer alegria
Que nenhum consolo me alivia.

VIII

Se hoje teu corpo eu não tocar
Romperá o frio de minh'alma
Como nervo distendido.
Carícia é a fúnebre flor
Deste que sofre por ti no amor.
A injusta pena manda sustar -
Brisa a minha febre alta acalma
Pois deliro aqui estendido.

IX

Duro e frágil nosso amor -
Que vale um beijo ligeiro?
Uma gota do aguaceiro
No deserto abrasador
Que a engole com abastança -
Alívio tão sorrateiro
E ante o brio novo avança.

X

O belo canteiro vislumbro mudo -
Cercado de espinho púrpura-escuro
Vê-se ali o botão de esporo obscuro
Pendem plantas com plumas de veludo
E arredondadas tufas verde-água
Dentro das alvas campânulas-sorriso -
Súbito as bocas impregnadas d'água
São os doces frutos do paraíso.

XI

Quando por trás do portão florido
Sentindo apenas nosso pulsar
A paz tão almejada alcançamos?
Como um par de juncos desvalido
Mudos começamos a tremer
Ao leve acariciar
Nosso olhar a se perder -
Assim por muito tempo ficamos.

XII

Se na relva alta imersos em paz
Nossa fronte entrelaçamos nas mãos -
Sublima a veneração a vontade:
Não pensem a sombra vil e vivaz
Disforme ao se projetar nos vãos -
E a guarda que iriam nos separar
Nem toda areia que afronta a cidade
Faria nossa paixão aplacar.

XIII

Atrás tens a relva em encantamento
Na margem - o leque de pontas duras
Coroa-te o rosto com luzes puras
E em voltas brincas com teu ornamento.
Já no barco a abóbada das folhagens
Atesta a tua recusa em subir...
Vejo a alga que fundo tende a ir
E dispersas n'água flores selvagens.

XIV

Não mencione
A folhagem -
Leva a aragem -
E as facetas
A cilada -
E a chegada
Da dor fria
Tarde no ano.
E no ar
Borboletas
Ao troar
A luz-viva
Brilho insone
É insano.

XV

Povoamos os noturnos breus
Folhas - trilho - horizontes e jardim
Os risos seus os sussurros meus -
Agora sim eis enfim o fim.
Flores empalacem ou fenecem -
Treme a face do lago pálido
Piso em falso no prado esquálido -
Os dedos com espinho intumescem.
A arfante folhagem ressecada
Golpeia com mão invisível
Acima o céu não é mais visível.
A noite está nublada e abafada.


É um poema no qual a variação musical, seja por meio da métrica ou do posicionamento das rimas (que também são internas), é evidente e de um engenho admirável. Nas quinze estâncias as imagens formam-se de maneiras confessas, semi-descritivas (somente na última que a descrição eleva o tom), e de tom um contemplativo, à maneira neo-romântica dos Simbolistas.
Mas eis o que é representativo: como em todos os países em que atuou, o Simbolismo calcou certa revolução para o futuro da arte, pois, mesmo tendo um estilo clássico - de certa forma - tinha um ar revolucionário e atemporal sobre o qual o truculento Século XX precisou se basear, de maneira absoluta, para fixar os seus alicerces de arte.

Abraços,
Cardoso Tardelli