segunda-feira, 29 de abril de 2013

Sugestões de Leitura - Parte XI

Caros leitores do Sacrário das Plangências, seguindo com as postagens tradicionais do blog, faço-lhes três sugestões de leitura, sendo elas um livro de história - tratando de um dos locais mais importantes para a literatura brasileira - e dois de literatura.

MÁRCIA CAMARGOS: Villa Kyrial: Crônica da Belle Époque Paulistana. Editora Senac, 2ª Edição. 255 páginas.

Esta obra que é, na verdade, a publicação da tese de doutorado da autora, trata de um dos locais mais importantes para a arte paulistana - e talvez brasileira - durante a transição dos séculos XIX e XX, independentemente do movimento artístico referenciado. De propriedade do poeta simbolista José de Freitas Valle, que teve grande parte de sua obra publicada em francês, sob o pseudônimo de Jacques d'Avray, na Villa Kyrial passaram desde personagens essenciais do Modernismo (de Heitor Villa Lobos a Mário de Andrade) até alicerces do Simbolismo e Parnasianismo - inclusive Olavo Bilac. José de Freitas Valle sempre teve por preocupação ter um local em que a arte fosse cultuada, em que os artistas fossem protegidos, fossem considerados as esferas principais de todas as discussões. A edição de Márcia Camargos, de um esmero gráfico impressionante, traz-nos uma documentação que, finalmente, faz jus à esse lugar que não somente foi um local de "peregrinação quase ritual para a elite intelectual", como definiu Andrade Muricy, mas o retrato de uma época de vanguardas e entusiasmo artístico, em plena contradição aos dias contemporâneos.

CECÍLIA MEIRELES - Vaga Música: Editora Global, 2013. 2ª Edição. Apresentação: João César de Castro Rocha. 178 Páginas.

Poucas poetisas no Brasil foram tão competentes e singulares em seus estros como Cecília Meireles. É inegável, ainda que poucos o digam, que a poesia de Cecília foi muito influenciada pelo Simbolismo, apesar de que ela não tenha optado nem pelo Modernismo, nem pelo Parnasianismo (somente em Espectros há algo muito parecido com um Pós-Parnasianismo), tampouco pelo Simbolismo mais clássico, à lá Cruz e Sousa (a quem ela sempre louvou). Vaga Música só nos mostra o aspecto de liberdade estética de seus versos, mas também nos confessa uma poetisa com uma "sugestividade vaga" que, apesar de profunda, somente uma iniciada no simbolismo teria a possibilidade de fazer. E, ora, até o nome da obra sugere esse aspecto "vago" a que me refiro. A edição, enfim, da Global tem uma boa apresentação feita por João César de Castro Rocha, e uma estética interessante, além de ser, claro, uma nova - e boa - edição de Cecília nas livrarias, visto que os problemas de direitos autorais envolvendo herdeiros da poetisa truncam tais publicações.


LOUCAS NOITES/WILD NIGHTS - Emily Dickinson - 55 poemas/poems: Edição bilíngue. Tradução e Comentários Isa Mara Lando. Disal Editora, 2010. 208 Páginas.

Esta edição vem preencher parcialmente uma incômoda lacuna que ronda as traduções da poetisa americana Emily Dickinson, que foi, sem dúvidas, uma das maiores de sua língua, não somente de seu país. Faltava-nos boas traduções da excepcional poesia de Emily, e certamente ainda nos falta, mas esta, numa edição bastante competente, além de mostrar a musicalidade do efêmero, como gosto de chamar a melodia presente em seus versos, mostra, por meio da competente tradução, a magnífica feição mística de sua poética, que se não deixa de ser panteísta, de certa forma não abandona um universo obscuro e agônico que ela própria desenvolvia em seus versos. É uma obra recomendadíssima a quem aprecia boa poesia e - essencialmente - a quem procura uma poesia que não encontra semelhante em outra qualquer no mundo.




Boas leituras!

Abraços,
Cardoso Tardelli

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Delírio! - Cardoso Tardelli

Caros leitores do Sacrário das Plangências, posto-lhes um poema presente na Poética das Quimeras (Selo FuturarteEd. Multifoco, 2012). 

A obra está disponível na Livraria Cultura (clique aqui para o link) e no site da editora (clique aqui para o link). Há agora também o e-book da Poética das Quimeras (clique aqui para comprá-lo na Amazon.)


DELÍRIO! - Cardoso Tardelli

"Alma! Que tu não chores e não gemas,
Teu amor voltou agora."
Cruz e Sousa

Santo o coração que sobreviveu inda
Sem a luz do amor que o domina...
Que, n'agonia da tormenta infinda,
Lembrava da fulgência divina!...

Nobre a alma que, abandonada,
Viveu tateando do passado as chagas
Na imortal ânsia da chegada
Do Amor que ornou as escuras plagas...

Pois os calvários regem o mundo
Como um cântico que nos guia à morte...
Ah! Orvalhado de sonho fecundo
O olhar que vê na terra alguma sorte...

Porque sempre voltam ao nosso afago
Os amores que julgávamos mortos...
Mas tão estranhos, suspirando pressago,
Trazendo nas frontes prantos absortos...

Voltam pedindo o remir do sofrer quedo,
Dos cilícios no peito, resignados...
Voltam porque atingem a febre do medo,
Quando ao Céu eram para serem alçados...

Tornam ao olhar do que os cantou no afã
Da saudade e da lembrança sem termos...
Quão belo seria ver a luz louçã
Que sonhei, pois eles vêm tristes, enfermos...

Ah! Que dê um coração intemerato
Abrigo aos que plangem horror atroz...
Pois, ao ouvirem o canto que desato,
Dizem: “Adeus! Tu sofres mais que todos nós!”

Abraços,
Cardoso Tardelli

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Três Poemas de Cardoso Tardelli na Revista Benfazeja

Caros leitores do Sacrário das Plangências, como vocês sabem, já tenho uma obra publicada (Poética das Quimeras, pela Editora Multifoco, 2012). Já tenho um outro livro pronto e que em breve será publicado. Como meio de divulgação dos poemas inéditos presentes na minha segunda obra, mandei para a Revista Benfazeja - um dos portais literários mais acessados da internet - três cantos do livro; e ei-los já publicados pelo sítio referido. Entre os três publicados, há o soneto "Soberania":


SOBERANIA - Cardoso Tardelli

"Na rude estrada em que me perdia,
Tingia o sol meu rumo inconstante...
A esperança era um vento arfante
Já sem manifesta feição ou melodia.

O meu peito exausto não mais pedia
A água para a sede apavorante:
Um manso descanso é o bastante
Quando a ilusão já não alumia.

A tristeza circundava os momentos:
O céu era o meu abrigo aos relentos,
As estrelas minhas amantes cristalinas.

E quando n'horizonte (ó êxtases belos!)
Floriu a visão de derrotados castelos,
Vi-me soberano entre íntimas ruínas..."

 Espero que gostem dos outros e os considerem como um pequeno taste de minha segunda obra:


E caso se interessem pelo primeiro livro (vários poemas do livro já foram divulgados neste blog, é só ir no marcador Poética das Quimeras, à direita da página, ou até mesmo no marcador Cardoso Tardelli) , o link para a compra por meio da Livraria Cultura é esse: http://www.livrariacultura.com.br/scripts/resenha/resenha.asp?nitem=29685064&sid=1701161861462557407969167

Há também a possibilidade de lê-lo por meio de e-book, cuja compra é por meio da Amazon: http://www.amazon.com.br/Po%C3%A9tica-das-Quimeras-ebook/dp/B00ENK5L2U/ref=sr_1_21?ie=UTF8&qid=1377118685&sr=8-21&keywords=multifoco

Abraços,
Cardoso Tardelli

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Alceu Wamosy - Poeta do seu e de nosso tempo

Caros leitores do Sacrário das Plangências, transcrevo-lhes um texto de Cícero Galeno U. Lopes, presente no livro "Poesia Completa" de Alceu Wamosy (Alves Editores, IEL, EdiPUCRS, 1994), complementando o texto com os poemas completos (já que Galeno somente coloca trechos dos textos).

Alceu Wamosy, simbolista e gaúcho, considerado à sua época o "segundo Cruz e Sousa", é mais um dos casos do simbolismo brasileiro em que o esquecimento tomou lugar do mérito poético. Não que, de fato, Alceu fosse o segundo Cruz e Sousa, mas era um poeta com várias qualidades e singularidades, indo muito mais além de seu clássico Duas Almas, soneto com o qual, para a academia, "entrou para a eternidade de nossas letras".

WAMOSY: POETA DO SEU E DO NOSSO TEMPO

Por Cícero Galeno U. Lopes

"Este estudo procura rever a obra wamosyana a partir de conceitos críticos anteriormente publicados. Mais precisamente, parte da análise introdutória à segunda edição de Poesias (Porto Alegre, Globo, 1925). Trata-se, portanto, de exame feito à obra completa. Nesse estudo Mansueto Bernardi propõe pelo menos dois posicionamentos a partir dos quais se podem alicerçar estas reflexões: 1 - "O planeta que habitamos constitui para Alceu um simples miradouro ereto à contemplação dos mundos irreais"; 2 - o poeta aparece para Bernardi como "sem olhos para ver a realidade circundante".

Nas suas reflexões, o crítico percebe que o homem nunca será o mesmo: "Nós mudamos incessantemente" - escreve Bernardi. Inobstante, não se refere assim à construção poética de Wamosy. O homem não será sempre o mesmo significa não apenas um processo histórico-social, como claramente um processo histórico-pessoal.

(Na foto: Alceu Wamosy)

Bandeira, em Nova-Poética, concebeu a poesia fora do sonho, embora ela seja, para ele, "também orvalho". O comprometimento coletivista, de base social, que reafirma elementos de identidade coletiva, contrapõe-se a essa poesia que Bernardi viu em Wamosy. A situação histórico-literária (da vigência do simbolismo) reafirmou essa condição lírico-onírica à obra de Wamosy. O individualismo sentimental e o intimismo hermético confrontam-se com a situação presente de poetas que vasculham o homem em tempo de dificuldades, que não enxerga apenas o exílio íntimo. "O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes" - escreveu Drummond em Mãos dadas.

A outra dificuldade, que normalmente se enfrenta para o estudo do poeta uruguaianense, é a carência bibliográfica, o que, aliás, esta edição vem sanar. Em geral, as antologias, que contemplam a obra wamosyana estampam Duas Almas e a partir desse poema elaboram-se as análises e as conclusões. Os estudos sobre Wamosy, em geral, repisam as marcas simbolistas na obra dele e nelas se concentram. Acrescente-se o contumaz desvio dos estudos em direção aos aspectos históricos do cidadão, esquecendo ou transferindo a segundo plato o eu poético. Na verdade, de acordo com o que indicou este estudo, Wamosy foi um poeta do seu tempo (é verdade) e também do nosso, como em continuação se procurará demonstrar.

No livro de estreia, Flâmulas (1913), já se percebem as marcas da reflexão contingencial, do racionalismo (de origem neo-parnasiana), como se lê, por exemplo, em Monturo Humano, em que se estabelecem as bipolaridades e consequentes antíteses características de toda a obra poética de Wamosy:

MONTURO HUMANO

É na obscuridade das choupanas,
Nos lúgubres albergues da pobreza,
Que andam vibrando na maior rudeza
Todas as grandes sensações humanas!

Aqui, é a flor serena da beleza,
Colhida à noite pelas mãos profanas!
Ali, palpitam, cantam, soberanas
Epopeias de vício e de pureza!

Há criancinhas nuas - açucenas
Desabrochando em lodo! Há virgindades
Cantando coisas torpes e obscenas!

E Deus faz desses antros obscuros,
Com toda a infâmia e a mágoa das cidades,
O mais humano e negro dos monturos...


O substrato dos conceitos expressos revela as ressacas românticas e o contra-fluxo da ideologia parnasiana, no vocabulário e na elaboração. Essa peculiaridade é comum à literatura gaúcha da época (pelo menos a produzida no interior do Estado).

Em A Revolta do Corvo, lê-se um poema nitidamente anti-simbolista, apesar do uso de símbolos:

A REVOLTA DO CORVO

Negro, petrificado e frio como um mito
De Buda, a passear o olhar de lado a lado,
Ele deixou-se ali ficar, sob o infinito
Peso de sua tortura - estranho torturado...

E lançando, talvez, à bruma do passado,
O seu profundo olhar sereno de proscrito
Atirou para o alto e negro céu calado
A blasfêmia audaciosa e rubra do seu grito!

E o céu que não escuta e que é marmóreo e torvo,
Riu, talvez, para si, da pequenez do corvo
E afivelou de novo a máscara de aço.

E o corvo, alçando o voo, embriagado e tonto,
Subiu... cortou a névoa... a bruma... e como um ponto
Negro, sumiu-se além, na escuridão do espaço...


Desde o título do soneto anunciam-se duas posições antagônicas ao simbolismo. Revolta contrapõe-se à posição tradicional (considere-se a circunstância histórico-social da época) do conformismo cristão e do fatalismo, que foi presença no período simbolista, como se pode comprovar lendo, entre tantos, Cárcere das Almas, de Cruz e Sousa, e A Catedral, de Alphonsus de Guimaraens. O fatalismo também ronda a obra (pós-simbolista) de Augusto dos Anjos.

Se a revolta não é uma atitude simbolista, corvo - pela simbologia que possa expressar - tem ainda menos de simbolismo, enquanto estética literária. Esse corvo "subiu... cortou a névoa... a bruma" - i.e, contrapõe-se e fere os símbolos mais marcantes do simbolismo (as transcendências, as brancuras, a imaterialidade/espiritualidade, o assentamento poético semântico sobre o significante). O corvo de Wamosy, ainda, "alçou voo", "sumiu-se além", i.e, mantém a trajetória para o alto. No simbolismo o alto é o ideal, a aspiração desvinculada da contingência; é o espiritual, representado pelas palavras simbólicas marcantes da estética.

No ano seguinte (1914) saía Na Terra Virgem, e novamente o poeta, tantas vezes considerado simplesmente simbolista, voltou aos poemas bipolares e antitéticos. (...) Pode-se constatar isso, por exemplo, em Desiludido:

DESILUDIDO

Por que te hás de aquecer ao sol dessa esperança
Nova que despontou na tua alma ingênua e crente?
Se ela é como sorriso em lábio de criança,
Que se há de transformar em pranto, de repente...

A ventura completa é céu que não se alcança,
Mas que a gente vislumbra, além, perpetuamente:
Esse céu mentiroso é um céu que foge e avança
Se é maior ou menor a aspiração da gente.

Sê simples e sê bom, mas não julgues que um dia
Hás de o teu coração, repleto de alegria,
Para sempre fechar, como quem fecha um cofre!

Crê que a desilusão é o sonho pelo avesso,
E que só se é feliz dando-se o mesmo apreço
Ao gozo que se goza e à mágoa que se sofre!

Noutra forma, a ocorrência se dá em Idealizando a Morte:

IDEALIZANDO A MORTE

Morrer por uma tarde assim como esta tarde:
Fim de dia outonal, tristonho e doloroso,
Quando o lago adormece, e o vento está repouso,
E a lâmpada do sol no altar do céu não arde.

Morrer ouvindo a voz da minha mãe e a tua,
Rezando a mesma prece, ao pé do mesmo santo,
Vós ambas tendo o olhar estrelado de pranto,
E no rosto, e nas mãos, palidezes de lua.

Morrer com a placidez de uma flor que se corte,
Com a mansidão de um sol que desce no horizonte,
Sentindo a unção do vosso beijo ungir-me a fronte,
- Beijo de noiva e mãe, irmanados na morte.

E morrer... E levar com a vida que se trunca
Tudo que de doçura e amargor teve a vida:
- O sonho enfermo, a glória obscura, a fé perdida,
E o segredo de amor que eu não te disse nunca!

Essa bipolaridade (a vida e a morte têm o mesmo valor) é frequente no poeta uruguaianense. Ela deriva, por um lado, do confronto crença-descrença, alma-corpo. Por outro, ela se origina da própria insurgência de novos valores coletivos.

O poeta atinge a culminância (no conjunto de poemas de base simbolista) em Coroa de Sonho, que inclui Duas Almas. Na Oferta (na abertura do livro) que faz a Maria Bellaguarda (com quem casaria in extremis), na segunda estrofe, diz o poeta:

Possuem do teu gesto encantador o ritmo,
e nos símbolos seus anda um mesmo mistério
que te aparta do mundo e apenas revela
Para o amor do meu culto-esplendor do meu sonho.

No terceto final, lê-se:

Ó toda pulcra Urna divina, urna de carne
onde a beleza dorme, harmoniosa e radiante,
recebe este Missal da minha adoração.

O que aí se lê é a elevação espiritual da visão feminina. Ouvem-se também ecos de Antífona. As bipolaridades, porém, não estão afastadas. Elas ocorrem entre o espiritual e o corpóreo, marca decisiva da obra de Wamosy, denunciadoras do dilaceramento (do eu) poético entre mundos decadentes, em extinção, e a presença material, corpórea, da vida. Os pólos se estabelecem também entre o passageiro e o perene, entre o concreto-sensível e o etéreo.

O fecho (terceto final) demonstra no primeiro verso a significação do mistério e da simbologia, através da maiúscula repetida, como se vê igualmente no primeiro verso de Antífona: 'Ó formas claras, brancas, cristalinas, Formas claras.' Missal, no derradeiro verso, nos remete a Cruz e Sousa. Inter-textualiza com o poeta catarinense - com a obra dele e com o tema do misticismo. Intra-textualmente, entrelaça relações polarizadas entre divino/sonho e urna-carne. (...) Aí, as bipolaridades e as consequentes antíteses predominam, desde a epígrafe "O próprio sonho não é senão uma sombra..." (de Hamlet).

(...)

No término dessas reflexões, examine-se Duas Almas. Nesse poema, muito além da antítese, está a bipolaridade, expressão subliminar do dilaceramento interepocal e interpessoal (representado pelo afastamento tu-eu) - constituinte dos conflitos poético-existenciais. As bipolaridades instauram-se desde a estrofe introdutória:

Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
Entra, e sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
Vives sozinhas sempre, e nunca foste amada.

Na segunda estrofe, a sugestividade fônica cresce significativamente. Aparecem antíteses de sensibilidade física (térmica e ótica):

A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
E a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entre, a menos, até que as curvas do caminho
Se banhem no esplendor nascente da alvorada.

Na terceira estrofe, o poeta consegue o clímax do trabalho fônico-expressivo:

E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
Essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
Podes partir de novo, ó nômade formosa!

A abertura - e amanhã - põe a sugestão da claridade, da luminescência, do renascimento. Depois, ainda no primeiro verso - quando a luz do sol dourar radiosa - e essa estrada - (já no segundo verso) - expressão a continuidade crescente da claridade emergente. (...)

Resta refletir, ainda neste terceto, sobre um dos excelentes versos do poeta (aqui parcialmente considerado):... sem fim, deserta, imensa e nua. Trata-se de dois pleonasmos com elevada expressividade: semanticamente sem fim equivale a imensa; deserta a nua. Nesse reforço semântico, no entanto, se sobre-instala a expressividade da gradação fônica das vogais tônicas das palavras: além do pleonasmo fônico sobre o significado semântico natural, textualizado, há delicada sugestividade de afastamento.

Na estrofe final, verifica-se o mais evidente emprego da bipolaridade, ao lado (como em todo o poema) do uso da nasalidade, utilizada como recurso musical:

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha,
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...

Finalizando: o título (Duas Almas) aponta à dualidade e à espiritualidade, o que leva o leitor a buscar no soneto mais do que simplesmente conceitos de solidão, amor e fugacidade."

****

Apesar de Cícero Galeano, como um bom acadêmico pós-modernista, sempre tentar colocar Wamosy além do Simbolismo - como em uma falaciosa tentativa de salvar a sua alma dos "precitos", dos quais só restaram dois realmente bons (na visão da academia) - Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens -, o texto traz uma análise interessante desse poeta gaúcho, falecido no combate de Poncho Verde - ocorrido durante a Revolução de 1923, em 03/09/1923.

Posto-lhes, para a melhor apreciação de Duas Almas (dividido por Cícero), o soneto inteiro.

DUAS ALMAS - Alceu Wamosy

Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
Entra, e sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
Vives sozinhas sempre, e nunca foste amada.

A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
E a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos, até que as curvas do caminho
Se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
Essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
Podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha,
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...



Abraços,
Cardoso Tardelli