sexta-feira, 30 de março de 2012

Um Curioso Caso de Plágio no Romantismo Brasileiro

Caros leitores do Sacrário das Plangências, nesta postagem discorrerei sobre um curioso caso, que não foi o único - mas foi bem representativo -, de plágio envolvendo o poeta de Primaveras, Casimiro de Abreu (1839-1860) e o seu amigo de infância, militar à época do caso, Sílvio Pinto de Magalhães (datas de nascimento e morte não encontradas), também poeta, mas de estro limitado, preferindo, em detrimento do desenvolvimento da personalidade de uma poesia, a cópia da poesia de Casimiro de Abreu.

Em dois casos, Sílvio de Magalhães copiou claramente poemas de Casimiro. Em "Meu Peito", plágio-paródia de "Minh'alma é Triste", obra-prima de Casimiro de Abreu, pouco recebeu atenção. Mas no caso de "Helena", houve um embate por intermédio do Correio Mercantil, jornal no qual os autores tinham direito de publicar os textos e também de debatê-los, inclusive utilizando pseudônimos. O poema original de Casimiro - "Pepita" -, foi claramente utilizado como alicerce tanto estrutural quanto temático, causando uma incomum revolta no sempre brincalhão Casimiro de Abreu. As discussões retiradas do Correio e o próprio poema de Sílvio de Magalhães foram retirados da Obra Completa de Casimiro de Abreu, organizada por Mário Alves de Oliveira (2010, G.Ermakoff).

Eis o poema original de Casimiro, a "Pepita":


PEPITA

A toi! toujours a toi!
V. Hugo

Minh'alma é mundo virge' - ilha perdida -
Em lagos de cristais;
Vem, Pepita, - Colombo dos amores, -
Vem descobri-lo, no país das flores
Sultana reinarás!

Eu serei teu vassalo e teu cativo
Nas terras onde és rei
A sombra dos bambus vem tu ser minha
Teu reinado de amor, doce rainha,
Na lira cantarei.

Minh'alma é como o pombo inda sem penas
Sozinho a pipilar;
- Vem tu, Pepita, visitá-lo ao ninho;
As asas a bater, o passarinho
Contigo irá voar.

Minh'alma é como a rocha toda estéril
Nos plainos do Sarah;
Vem tu - fada de amor - dar-lhe co'a vara...
- Qual do penedo que Moisés tocara
O jorro saltará.

Minh'alma é um livro lindo, encadernado,
Co'as folhas em cetim;
- Vem tu, Pepita, soletrá-lo um dia...
Tem poemas de amor, tem melodia
Em cânticos sem fim!

Minh'alma é o batel prendido à margem
Sem leme, em ócio vil
- Vem soltá-lo, Pepita, e correremos
- Soltas as velas - desprezando remos,
Que o mar é todo anil.

Minh'alma é um jardim oculto em sombras
Co'as flores em botão;
- Vem ser da primavera o sopro louco,
Vem tu, Pepita, bafejar-me um pouco
Que as rosas abrirão.

O mundo em que eu habito tem mais sonhos,
A vida mais prazer;
- Vem, Pepita, das tardes no remanso,
Da rede dos amores no balanço
Comigo adormecer.

Oh! vem! eu sou a flor aberta à noite
Pendida no arrebol!
Dá-me um carinho dessa voz lasciva,
E a flor pendida s'erguerá mais viva
Aos raios desse sol!

Bem vês, sou como a planta que definha
Torrada do calor.
- Dá-me o riso feliz em vez da mágoa...
O lírio morto quer a gota d'água,
- Eu quero o teu amor!

Rio - 1858


Transcrevo então o "Helena" de Sílvio, poema claramente baseado no canto de Casimiro de Abreu.

HELENA

Minh'alma, Helena, foi um dia o canto
Que ouvias no cismas,
Esse canto repleto de doçura
Que dava-te ao sentir meiga ternura
E vida ao teu chorar.

Foi o leve perfume das grinaldas
Das virgens do Senhor;
Minh'alma foi o riso da donzela,
O raio mais formoso de uma estrela
Que estremece de amor.

E os meus sonhos, Helena, tão suaves,
Foram sonhos gentis;
Lindas paisagens de formosas cores,
Vaporosas visões loucas de amores,
Imagens infantis.

Mas essa alma de então perdi de todo
E os meus sonhos também:
Assim se perde na sombria veiga
A tristonha canção da rola meiga
Que chora a dor que tem!

Ah! meu Deus, como a aurora desse tempo
Despertava gentil!
Como doce era a luz da madrugada,
E nos céus das manhãs, donzela amada,
Que poeira d'anil!

---------

Os sonhos que hoje tenho são sem vida,
Já lhes falta dulçor!
- Esmaltes desmaiados de uma outra era,
Lembranças de passada primavera,
De um passado de amor.

Ai! minh'alma de agora é flor crestada,
Abatida a cismar!
Inculta planta de terreno ingrato,
Despida de verdores, n'outro mato
Isolada a murchar!

Só tu, Helena, poderás das viço
À ressecada flor;
À planta inculta conceder verdores,
E aos sonhos desmaiados - vivas cores
E o perdido dulçor.

Vem - depois saberás quanta delícia
Existe no viver!
- Abre as asas gentis, solta os adejos,
Vem trazer-me a ventura nos teus beijos
De encantado poder.

E minh'alma será então a imagem
Do teu mago sorrir!
- Vem, angélica irmã das brancas flores,
Favorita gentil dos meus amores,
Florescer meu porvir.

Sílvio Pinto de Magalhães.
Rio, 1859


Acerca desse poema, Casimiro de Abreu, ao corresponder-se com Francisco do Couto Sousa Júnior,  seu grande amigo, em carta de 19 de Fevereiro de 1859, fez críticas a Sílvio, que posteriormente se expandiriam ao âmbito público:


(Na foto: Casimiro de Abreu - provável última foto do poeta)

"É um defeito do Sílvio copiar muito, porque ele não tem poesia alguma que seja toda sua. Ainda ontem ele publicou no Mercantil uma intitulada - Helena - que é uma cópia da minha - Pepita! - Não sei se tu lembras dela, mas hás de ver que eu tenho razão. Ele imitou tudo: a forma do verso, o número deles, as ideias, e até mesmo o título que é também nome de mulher! - Ora isto é demais, e eu fiquei tão zangado ontem que brandi uma sarabanda que saiu hoje no Mercantil. Não me assinei, e atribuí a - Pepita - a T. de Melo para ele não desconfiar que sou em quem escrevi o tal artigo. Peço-te segredo."

E com o pseudônimo de "Cham", Casimiro de Abreu escreveu uma crítica a Sílvio na segunda página do Correio Mercantil. Ei-la:

"Aos Srs.poetas. Ultimamente tem-se desenvolvido a mania dos moços poetas plagiarem e irem buscar leu bien où ils le trouvent. Ainda hoje (18) uma poesia que vem no Correio Mercantil intitulada Helena assinada pelo senhor Sr. Sílvio P. de Magalhães - é uma imitação demasiadamente aproximada de uma outra que saiu há meses com o título de - Pepita - julgo que do Sr. T. de Mello. Se continuarmos assim, e dois sujeitos publicarem a mesma poesia, qual será o autor - verdadeiro? É preciso pois haver mais cuidado, aliás se aparará a pena do caricaturista. Cham"

No dia seguinte, Sílvio respondeu por meio do mesmo Correio Mercantil:

"Ao Cham. O número de plagiadores está em muito menor proporção que o dos tolos que se metem a sensores."

Casimiro não deixou o ataque de Sílvio barato e respondeu, também um dia depois e no mesmo Correio Mercantil, mas de uma forma mais branda, demonstrando um domínio em situações de controvérsias:

"Plágios e plagiários. Por isso mesmo que não há crítica entre nós é que os meninos se zangam com a menor observação. Em questões literárias não se insulta: - discute-se. Os plágios provam-se. Cham"

O que se leu posteriormente foi uma série de agressões feitas por Sílvio P. de Magalhães, chegando a sugerir um tom pedante na obra original de Casimiro e, além do mais, dizendo que "Cham" o insultou "incivil e covardemente". Casimiro de Abreu tratou logo de repetir a sua opinião sobre as "questões literárias" e tratou de encerrar o assuntou, vendo que, perante a braveza inoperante de seu amigo plagiador, aquela longa discussão não caminharia a lugar algum.

Acontecimentos como esse, não somente envolvendo plágios, mas também discussões sobre a moral de uma obra ou até mesmo a qualidade, eram muito comuns nas páginas de jornais do Século XIX. Com a ausência de críticos, na concepção do ofício de tal, cabia aos autores, que também eram, em sua maioria, jornalistas, fazer o papel de observadores das tendências artísticas da época. Machado de Assis (1839-1908), amigo pessoal de Casimiro de Abreu, exerceu uma grande função de autor-crítico nos jornais cariocas, sendo um dos grandes debatedores de sua época, mas não sendo um fundador (ao contrário do que muitos defendem) do ofício. Aliás, Machado, em suas discussões, cansava-se depois de um tempo, por melhores que fossem os argumentos apresentados por ambos os lados, deixando, em muitas vezes, o seu "oponente" sem resposta.
Foram casos como esses, ricos em vaidades, em discussões, e pobres em observações críticas, que deram, não obstante, o inicial alicerce para o movimento de uma crítica, inclusive com revistas e jornais próprios para tal.

Abraços,
Cardoso Tardelli

terça-feira, 20 de março de 2012

Um Ótimo Documentário Sobre Cruz e Sousa

Caros leitores do Sacrário das Plangências, posto neste sítio um documentário feito pela TV Brasil sobre Cruz e Sousa, com o nome "João da Cruz e Sousa - De Lá Pra Cá", exibido em 20/10/2011.


Somente alguns comentários farei: no documentário, ainda é mantida a versão de que Cruz e Sousa teve aula com Fritz Müller. Porém, como atesta Ivone Daré Rabello, em Uma Leitura da Poética de Cruz e Sousa, o que ocorreu, na verdade, foi uma inversão de datas (Cruz e Sousa não teve aulas na época em que Müller lecionava no Liceu Provincial) e uma evidente tomada de ensejo pelos Simbolistas, pois, de fato, Fritz havia elogiado um de seus alunos, relatando que ele era negro e botando-o contra às teorias cientificistas -, justificando-se, portanto, na visão dos defensores de Cruz e Sousa, a presença do poeta negro na Literatura Brasileira por ele não ser inferior a um branco - sendo tal óbvio fato atestado, finalmente, por um mestre alemão.

Senti falta de alguma menção sobre Nestor Vítor no documentário. Cruz e Sousa o tinha como amado amigo, dedicando-lhe três sonetos em Últimos Sonetos (os três estão sob o nome de "Pacto das Almas"). Sem Nestor Vítor, provavelmente, não viriam tão cedo a lume as publicações póstumas do Dante Negro, pois ficaram a cargo do grande amigo do autor de Broquéis a publicação dos originais não-publicados, confiados por Cruz Sousa antes de sua viagem à morte.

O Simbolismo não somente fora um estilo do culto ao "Eu" (postura posta, quase sempre, em nosso país, como pecado), mas da expansão desse "Eu". Não era uma ânsia interna falando somente a si mesma, mas ao infinito, perscrutando os espaços da mente humana como nenhum outro estilo anterior o havia feito. É impossível julgar, tendo em vista que a Arte é um espelho de um Eu num espaço-tempo - não de uma sociedade por ela mesma-, que a Poesia Simbolista era individual e egoísta (levando, muitas vezes, a adjetivos quais "egotista", "elitista"...)

Por um todo, o documentário representa um meio bem didático de iniciação para a obra e biografia de João da Cruz e Sousa, que foi, de fato, o nosso maior Simbolista, apesar de não ter sido o nosso fundador do movimento (várias palpitações literárias anteriores a 1893 já indicavam o caminho seguido sob o signo do Símbolo).

Abraços,
Cardoso Tardelli

sábado, 10 de março de 2012

O Vocabulário Litúrgico no Simbolismo

Caros leitores do Sacrário das Plangências, cá faço uma postagem bem diferente das demais encontradas neste blog. Visando tratar do vocabulário de um estilo, e também acentuando a evidência de que esse vocabulário não era em uma totalidade estranho aos leitores, negando, portanto, a face "excêntrica" comumente atribuída ao movimento, escrevo essa postagem com o intento de desvendar alguns dos vocábulos mais comuns dos Simbolistas, poetas que, apesar de muito ligados ao Catolicismo, eram julgados como satanistas pela sociedade e pelos críticos literários, numa derivação néscia do aspecto "decadente" do estilo e do eu-artista. Além de tudo, analisaremos os motivos pelos quais esses vocábulos estão sendo postos de lado mesmo numa sociedade essencialmente religiosa.

No Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, de Andrade Muricy, em seu volume II, há uma tabela que nos aponta os vocábulos que eram mais comumente usados. Como o escaneamento da tabela torna-se impossível devido à grossura do livro, transcrevo cada vocábulo e os seus significados:

VOCÁBULOS DA LITURGIA CATÓLICA UTILIZADOS NO SIMBOLISMO:

Âmbula: Pequeno vaso onde se conservam os santos-óleos .
Ângelus: Ave-Maria rezada ao amanhecer, ao meio-dia, e ao poente (do latim Angelus Domini)
Antífona: Versículo que se canta antes dos salmos e que depois se repete alternadamente em coro.
Ara: Altar; altar rústico de pedra.
Ascetério: Retiro dos ascetas (figuradamente: abadia, convento), portanto, daqueles que se dedicam à ascese, exercício que leva à efetiva realização da Virtude e da Moral por meio da devoção e da penitência. Muito utilizado pela corrente moralista do Simbolismo, como a de Cruz e Sousa.
Baldaquino: Armação ornamental sustentada por colunas, que serve de cúpula para um altar, trono ou leito.
Burel: Roupagem dos frades e freiras. Por extensão: luto e tristeza.
Cantochão: Canto litúrgico da Igreja Católica Ocidental, baseada na teoria monódica, cujo ritmo se baseia nas divisões apenas na divisão do fraseado e na acentuação; canto gregoriano. Muito utilizado, segundo Andrade Muricy, com a imagem de "cantochão do ocaso".
Cardinalício: Relativo a cardeal. Fig: rico, pomposo.
Cela: Aposento de frades ou de freiras, nos conventos.
Cenóbio: Habitação dos monges; convento. Por extensão: agrupamento de espíritos elevados.
Cenotáfio: Momento fúnebre elevado à memória de alguém, mas que não lhe encerra o corpo.
Cibório: Vaso onde se guardam as hóstias sagradas.
Círio: Vela grande, de cera.
Claustro: Convento; por extensão: isolamento; vida monástica.
Comunhão: Ao ou efeito de comungar.
Dalmática: Veste litúrgica que diáconos e subdiáconos usam sobre a batina.
De-Profundis: O salmo dos defuntos.
Dulia: Culto prestado aos santos e aos anjos.
Eremitério: Lugar onde vivem os eremitas; convento. (Por extensão: lugar ermo, solitário, calmo, silencioso).
Ermida: Capela fora do povoado, capela solitária. (Muito usual; proveio, segundo A. Muricy, da poesia pastoral portuguesa, não obstante).
Estola: Fita larga que os pastorais põem por cima da batina.
Evangeliário: Livro que contém os Evangelhos para a missa do dia a dia.
Exorcismo: Cerimônia ou oração para libertar da possessão demoníaca.
Extrema-Unção: Unção dos enfermos (um dos sete sacramentos da igreja católica). Figurado: agonia.
Hissope: O mesmo que aspersório, ou seja, instrumento pelo qual se asperge (borrifa, orvalha) a água-benta.
Hostiário: Caixa para hóstias ainda não consagradas.
Kiriale: Livro litúrgico; contém o Kyrie e o Ordinário da Missa. (Título de um dos livros de Alphonsus de Guimaraens).
Kyrie: Invocação a Deus. No cristianismo primitivo, esta invocação era feita enquanto os fiéis encaminhavam-se para a igreja. (Usado como oração suplicativa).
Lausperene: Louvor perpétuo ao Santíssimo Sacramento (do Latim Laus, que é louvor, e do Italiano perenne, que em Português tornou-se perene, portanto "louvor perene"). Em Francisca Júlia, marcou esse vocábulo o verso derradeiro de Noturno: "O Lausperene mudo e súplice das almas".
Litania: Oração formada por uma série de invocações curtas e por respostas repetidas.
Liturgia: Culto público e oficial instituído pela Igreja Católica para a Missa.
Memento: Cada uma das preces da parte central da missa.
Miserere: Lamentação, súplica.
Missa: Celebração da Eucaristia, sacrifício do Corpo e do sangue de Jesus Cristo, feito no altar, por um sacerdote. Muitas vezes, "missa" tem denotação de culto, tão somente, sendo expandido a várias percepções da passionalidade humana, desde o Sonho até o Amor.
Oblato: Oferecido a Deus; leigo dedicado à fé sem qualquer voto eclesiástico e claustral.
Ofertório: Parte da missa em que se oferece a Deus o pão e o vinho.
Ofício: Oração pública da Igreja; a Missa.
Pálio: Sobrecéu portátil, com varas, que se leva em procissões para cobrir o sacerdote que conduz a custódia. Fig: o céu.
Paramento: Vestuário e ornatos eclesiásticos.
Penitência: Um dos Sete Sacramentos da Igreja Católica.
Pontificial: Relativo ao papa. Fig: pomposo, rico.
Prece: Súplica religiosa; oração. Por extensão: a obra poética.
Salmo: Oração em gênero poético.
Saltério: Designação que os setenta tradutores do Antigo Testamento deram ao hinário de Israel, ou seja, aos salmos.
Responso: Versículos rezados ou cantados alternadamente por dois coros; oração a Santo Antônio para que não se aconteça malograrias.
Réquiem: Ofício aos Mortos, que principia da sentença "dai-lhes o repouso eterno".
Rito: Regras e cerimônias que se devem observara na prática da Religião; ritual.
Rosa-Mística: Ladainha lauretana de Nossa Senhora.
Sacramento: Sinal sagrado instituído por Jesus Cristo para a distribuição da salvação divina àqueles que, aceitando-o como Salvador, fazem-no como uma Profissão de Fé. Sacramental: Adj: Por extensão: solene, majestoso.
Santos-Óleos: Unção Espiritual.
Setenário: Exercício de devoção que durava sete dias. (Referência ao número cabalístico sete, também). Uma das obras mais célebres de Alphonsus de Guimaraens chama-se Setenário das Dores de Nossa-Senhora.
Teofania: Manifestação de Deus em algum lugar, ocorrência, ou pessoa.
Turíbulo: Caçoula de incenso.
Torre de Marfim: Louvor da ladainha lauretana de Nossa Senhora. Transcrevo a magnífica explicação de A. Muricy do significado do termo ao Simbolismo: "Tem o sentido de isolamento altivo, de solidão por aristocratismo de alma ou de espírito. Também sinônimo de 'arte pela arte' alheia à política e, pelo menos diretamente, aos problemas de ordem social. Apesar de os simbolistas não abstraírem dos interesses humanos, na sua turris eburnea, a expressão, hoje, é empregada na acepção restritiva de arte egoisticamente subjetiva. O volume de versos de Tristão da Cunha chama-se Torre de Marfim; Na Torre de Marfim é uma das obras de Zeferino Brasil".
Trindade: A união do "pai, do filho e do espírito santo" em um só Deus (o Mistério da Santíssima Trindade); também colocado como a hora em que se tocavam os sinos ao anoitecer, ou relativo a essa hora.
Unção: Transmissão ou confirmação de um caráter sacro.
Vésperas: Na Liturgia das Horas, hora canônica posterior à Noa (que é às 15:00), referenciando-se ao cair da tarde, quando Vênus, no horizonte, começa a aparecer.

Como eu havia dito no início da postagem, muitos desses vocábulos foram tachados de estranhos e excêntricos à primeira vista. Porém, não seria de grande dificuldade apontar alguns que faziam parte de estilos poéticos dominantes ou há pouco dominantes. "Aras", "Dulias", "Claustros" eram facilmente encontradas em Álvares de Azevedo, o nosso maior poeta do Romantismo (além de em outros poetas do estilo, como Fagundes Varela). "Réquiem", "Trindade", "Sacramento" e "Lausperene", entre outros, eram encontrados nos poemas com temáticas fúnebres ou religiosas do Parnasianismo, que vez ou outra perambulava por esses temas personalíssimos, deixando de lado a opção impessoal da poesia. Outra evidência da presença dos vocábulos perambula pelo óbvio: apesar do cientificismo e de uma pseudo-lógica que estava contaminando a sociedade, muitos desses vocábulos já estavam evidentemente anexos ao vocabulário do brasileiro, que era (e ainda é) determinantemente um povo religioso.

É de plena importância perceber que grande parte desse vocabulário fora perdido não por falta de documentos ou de textos que contenham-no, mas pelo posicionamento errôneo, mas muito comum, do "não uso no dia-a-dia", que fada obras ao esquecimento pela falta de capacidade de divisão de momentos formais e informais do uso da Língua (e que fique claro que a serventia do uso de ambos são importantes, além do óbvio reconhecimento de que a forma culta pode acrescida, mas não por um meio no qual ela possa se expandir por intermédio de erros). Ora, um dos grandes problemas da negação de um vocabulário vasto é o empobrecimento de uma Língua que sempre se destacou pela sua exemplar riqueza, dando não somente aos artistas, mas à população também, variáveis maneiras de se expressar por meio da linguagem, não tendo de lançar mão de expressões repetidas e mendigais, como vemos hoje - e que ainda são postas como "o futuro da Língua por adaptação à sociedade".

Sendo esse vocabulário típico de uma crença, mas, no caso exposto no tópico, típico também de estilos artísticos, a sociedade contemporânea, cuja interpretação para a altiva espiritualidade humana resume-se ao nulo, observa tais vocábulos com receio e um interno hermetismo, adjetivando a poesia como mística ou misticista - algo que os próprios Simbolistas não negavam - mas numa tentativa de colocar a Arte como falaciosa, por não demonstrar a realidade como ela é, sendo demasiadamente quimérica.

O ponto é que o vocabulário em questão não somente se refere à Fé e à Religião, mas a um elevado grau de espiritualidade. Na sociedade em que vivemos, o espectro do Niilismo sem argumentos, do ateísmo vazio, do "viver e deixar viver", e por assim ser, sem questionamentos, é uma das grandes sombras viventes, resultando, em muito, pela opção ao Cientificismo em detrimento da Arte, pelo não-ser em detrimento do Humanismo, pela inclinação à Doença da Obviedade-Sinestésica em detrimento da inclinação a obviedade dos Mistérios. Portanto, todo um aspecto de um estilo, senão o estilo como um todo (que era essencialmente religioso, com extrema feitio Marial), poderia ser esquecido por uma sociedade para a qual o aspecto religioso de algum autor só o diminui, por, como descreveu Andrade Muricy na questão da "Torre de Marfim", transformar a arte do poeta em "sinônimo de 'arte pela arte' alheia à política e, pelo menos diretamente, aos problemas de ordem social.", na anti-artística necessidade atual da arte ser fidedigna a tudo o que vemos.

Abraços,
Cardoso Tardelli

sexta-feira, 2 de março de 2012

Um Descobrimento dos Simbolistas Brasileiros - Parte XII

Caros leitores do Sacrário das Plangências, nesta postagem, continuo a fazer as amostragens do nosso movimento Simbolista, tendo como fonte, principalmente, o "Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro", de Andrade Muricy. Mostrarei três poetas - sendo um o irmão de Alphonsus de Guimaraens, o tão antes popular Archangelus de Guimaraens -, além do essencial Santa Rita.

POETAS SIMBOLISTAS:

Adolfo Araújo (1872 - Cidade do Serro - MG - 1915 - SP):

Formado em direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, fez-se notar como poeta e orador, ao lado de Alphonsus de Guimaraens e de Severiano de Resende, além de outras personalidades Simbolistas. Teve carreira jornalística, chegando a contribuir para o A Gazeta. Grande polemista e considerado um dos maiores jornalistas de sua época, chegou a causar ódio por suas opiniões, defrontando-se com atentados, como um apunhalamento na Rua 15 de Novembro e uma colocação de dinamite na casa em que residia. Poeta de feitio típico do Simbolismo ortodoxo.

MISERERE REI

Vesti por tua causa o gélido bloco
De ermitão penitente, antítese da mágoa;
E errei de bosque em bosque, e erei de frágua em frágua,
Tateando a solidão tresviado e louco.

A dor afeleou-me os olhos rasos d'água.
A tristeza exauriu-me o alento pouco a pouco;
Mais ainda no meu peito estarrecido e rouco
A tua imagem vejo, acaricio, afago-a.

Morri para esta vida e para os gozos deste
Mundo lodoso e mau, desde que tu morreste
Para o meu coração, sempre à alma junto;

E é só por um castigo atroz que me sujeito
A viver carregando o coração no peito
Como quem carregasse o esquife de um defunto.

(Em A Gazeta, 16 de Maio de 1914)


GLOSSÁRIO:
Afelear: Misturar com fel. amargar.

IN GURGITE

Vai, coração! Levanta as âncoras! Desfralda
As velas! A onda como uma huri de Istambul
Mole se embala e ri num requebro taful
E abre por te acolher o seio de esmeralda.

E se arqueia e soluça; e desfolha a grinalda
De espumas e corais... Vai, marinheiro êxul!
Borrascas - nem sinal. Céu azul, céu azul!
O ar está leve; o vento é manso; o sol escalda.

O sol escalda, o vento é manso, o ar está leve!
E a branca multidão das gaivotas descreve
Giros empós a nau que tão longe passou.

Vai tranquilo e com Deus sem temer mau presságio,
Porque num mar assim não receia o naufrágio
Quem no mar da ilusão tanta vez naufragou!

(De um recorte de revista, oferecido por Murilo Araújo)

GLOSSÁRIO:
Huri: Cada uma das virgens que, segundo o Alcorão, desposarão os muçulmanos no Paraíso; por extensão: mulher de beleza prodigiosa.
Taful: Alegre, elegante, gentil, gracioso.
Êxul: Exilado, desterrado.
Empós: Após, depois.

Santa Rita (1872 - Paranaguá - PR - 1944 - Curitiba):

José Henrique de Santa Rita foi um dos grandes Simbolistas da primeira geração do movimento. Aportando no Rio de Janeiro no início do desbravamento do estilo feito por Cruz e Sousa, Nestor Vítor, Emiliano Perneta, entre outros, aproximou-se deste grupo, sendo, subsequentemente a grande ligação dos movimentos carioca e paranaense. Maior amigo de Emiliano Perneta, chegou a fazer trabalhos de crítica para o Ilusão, obra de Perneta, cuja concepção acompanhou de perto, por ter sido o grande companheiro nos derradeiros momentos do curitibano. Reconhecidamente uma das maiores personalidades do primeiro Simbolismo, chegou a realizar uma conferência em 1923 sobre o seu amigo Cruz e Sousa, e, mesmo com as ideias Modernas batendo à porta da fama, nunca hesitou em escrever em seu singelo estilo.

RETORNO

Voltas de novo rútila e formosa,
Doira o teu riso o peregrino encanto,
Que envenenou esta alma afetuosa,
De atra paixão no seu voraz quebranto.

Dessa mansão ideal e capitosa,
Cujo céu tinha a essência do teu canto,
Venci, sangrando, a estrada dolorosa,
Onde, do Amor apenas tive o pranto.

Fanatizei-me ao ver-te o olhar coberto
Duma névoa de lágrimas tão doce
Como a Santa na agrura de um deserto!

Ora vacilo só, triste e sombrio,
N'atra viuvez do amor que dissipou-se:
A rolar, amargo e turvo como um rio.

(Pallium, Curitiba, ano I, nºIII, Novembro de 1898; pág.2)

GLOSSÁRIO:
Atra: Negra, obscura, lúgubre, infausta, fúnebre, tristonha.
Quebranto: Resultado mórbido do mau-olhado.

A UM LÍRIO MORTO

Desceu da morte a tenebrosa escada,
Calma e pura aos meus olhos se revela
Olavo Bilac

Nesta incerta jornada, em meio da existência,
Ao pungir da atra dor e de rude saudade,
Meu coração, por ti, tão cheio de dolência,
Ajoelha, rezando à extinta mocidade.

Céu piedoso e imortal! quero a tua clemência!
Do teu meigo consolo aspiro a suavidade;
Nas cinzas da paixão inda ficou a ardência
E a palmeira ideal daquela doce idade...

Este luar que inunda o meu triste aposento
Tanto outrora assistiu à expansão do teu beijo
E à loucura febril do nosso amor violento!

De joelhos eu me prostro e mil preces murmuro:
Todo o ar se harmoniza e, ao soluçante arpejo,
Descer a consolar-me, a este planeta escuro.

(Almanaque Paranaense para 1902, pág. 187)


RITUAL

Tudo quanto, no mundo, ora contemplo e indago,
O mistério da Morte e o mistério da Vida,
Reflete ao meu olhar, na limpidez de um lago,
O segredo por que foste à cova descida.

Atra saudade encheu- me o coração pressago.
Quanta pena reflui nesta alma combalida!
Fiz do Passado o templo, em que, chorando, afago
Do teu vulto  de amor a imagem dolorida.

Sob o céu festival da rósea mocidade
Partiste para o Além, tão santa e tão formosa,
Espelhando no olhar infinita piedade.

Ressurgiste, na glória, a ensinar-me os caminhos:
A vida humilde e boa, a Paixão Dolorosa,
E a ventura sem fim que nasce dos espinhos!

(Em Rodrigo Júnior e Alcibíades Plaisant - Antologia Paranaense, pág.222)

Archangelus de Guimaraens (1872 - Ouro Preto - MG - 1934 - Belo Horizonte):

Assim como o seu irmão Alfonso, arcaizou o seu nome para o uso em poesia. Nascido no dia de Natal, teve grande influência da poesia portuguesa e das temáticas cristãs (muito utilizadas também pelo seu irmão). A sua obra foi essencialmente composta no período em que era estudante de Direito, curso que lhe deu a possibilidade de trabalhar como auditor da Força Pública do Estado, com patente de Capitão, sendo posteriormente elevado a major, levando-o a morar em Belo Horizonte. Segundo Alphonsus de Guimaraens Filho, que organizou a edição da poesia de Archangelus, "a popularidade de certos poemas de Archangelus só é equiparável à que tiveram os dos românticos".


CRISTO DE MARFIM

Ao Monsenhor Pinheiro

Talhado no marfim o corpo santo,
Da brancura dos lírios e das rosas,
As rubras chadas que provocam pranto,
Pregadas no madeiro as mãos piedosas...

Contemplo e leio nesse corpo, entanto,
Nessas linhas divinas, harmoniosas,
Todo um poema de amor, canto por canto:
As noites da Judeia silenciosas...

Brandos olhos mais doces que esperanças,
Braços que vieram para erguer crianças,
Como tudo é perfeito e nos contrista!

É que pelo marfim do corpo exangue,
Por essas chagas que não deitam sangue,
A alma passou de um verdadeiro artista!

28 de Abril de 1907

(Em Coroa de Espinhos, 1955)

EN REVENANT...

Morria o som da última quadrilha...
E ela pousou sobre o seu busto leve
A peliça azulada da mantilha,
Como uma flor que receasse a neve...

E essa ave morena de Sevilha,
Essa faïance graciosa e breve,
Em pouco voar para o aconchego deve
Do seu ninho de rendas e escumilha...

Entrou - e agora está deserta a rua.
E não sei quê de lânguido flutua
Por sob a névoa da cidade morta.

Ainda erra pela noite o seu perfume,
E o silêncio acompanha o meu ciúme,
Como um Otelo, a lhe rondar a porta!

(Em Coroa de Espinhos)

GLOSSÁRIO:
Mantilha: Pequeno manto senhoril.
Faïance: Cerâmica.



Caros leitores do Sacrário das Plangências, finda está aqui a décima segunda parte do estudo sobre os simbolistas brasileiros. Seria bem interessante pontuar sobre a arcaização do nome feita por Archangelus de Guimaraens. Basicamente, ela seguia os caminhos feitos por Alphonsus, inclusive perambulando pelo sobrenome-literário "Vimaraens", utilizado e rejeitado, posteriormente, pelos dois. A arcaização do nome demonstra um estado d'alma - posto sempre no passado, mas vivendo às misérias no presente -, uma visão de poesia, não somente um requinte gráfico e sugestivamente pedante (mais provavelmente pedante àqueles que não compreendem o sentido de Poesia e do eu-lírico) para impressionar o leitor, como alguns poderiam pensar.

Abraços,
Cardoso Tardelli