quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Sugestões de Leitura - Parte III

Caros leitores do Sacrário das Plangências, como faço de quando em quando, postarei algumas sugestões de livros, sejam eles de poesia, de romance, teatro ou de história. Muitas vezes, atento-me às edições novas que saem - e por tal coloco o livro na seleção.

SUGESTÕES DE LEITURA:

ELIZABETH BARRET BROWNING - Sonetos da Portuguesa. Tradução: Leonardo Fróes. Editora Rocco, Rio de Janeiro. 1ªEdição, 2011. 128 páginas.

Eis um livro de poesia que, ao mesmo tempo que soa desconhecido aos ouvidos de muitos, causa um impacto extremamente positivo ao ser lido. Traduzido com extrema qualidade (apesar de certo abuso na liberdade da pontuação, se comparado ao original), o livro nos traz talvez uma das maiores poetisas em língua inglesa. Elizabeth Barret (1806-1861) descreve, por meio de uma linguagem de volúpia sutil, frustrada e, ao mesmo tempo, esperançosa, o seu romance com o poeta Robert Browning (1812-1890), além de temáticas vindas de seu coração espirituoso.



MÁRCIA CAMARGOS - Musa Impassível. Editora: IMESP, São Paulo. 1ªEdição, 2007, 132 páginas.

Quando escrevia o post anterior, já tinha conhecimento do livro da historiadora Márcia Camargos. Quando questionava a postura das editoras perante a figura de Francisca Júlia em nossas letras, não errei, porém, ao indagar o esquecimento da "poesia de F. Júlia", pois o livro de Carmargos, acima de tudo, é uma análise de história social, que usa como alicerce uma poetisa que, em plena transição para o Século XX, equiparou-se aos grandes da tríade parnasiana. Tentando adaptar os possíveis inadaptados ao viés poético (com páginas como, por exemplo, as do "Guia Básico do Parnasianismo", em que ensina-se a "ser um parnasiano" (seguindo as regras básicas do estilo, como os Alexandrinos Arcaicos - quatorze sílabas - com acento na sexta sílaba, a célebre chave-de-ouro, e a "arte-pela-arte"). No entanto, a maneira pela qual ela coloca Francisca Júlia no panorama das nossas letras e de nossa sociedade é justíssima, tendo imagens raras de originais da poetisa, de poetas da época (de anotações destes sobre os poemas de F. Júlia). Há também um interessante relato sobre a restauração da escultura "Musa Impassível", afim da sua mudança a Pinacoteca do Estado. Há de se questionar neste livro, somente, a relativa diminuição da obra Simbolista de F. Júlia, quando esta parte da obra, mesmo que não tenha composto a maior porção, é de uma qualidade inefável - e, biograficamente falando, é a referência maior do estado de alma em que se encontrava a poetisa após os seus Mármores.

PAOLA PRANDINI - Cruz e Sousa. Retratos do Brasil Negro: Selo Negro, São Paulo. 2011. 136 páginas.

É um grande alívio e uma grande ventura saber que há uma publicação sobre Cruz e Sousa envolvendo o movimento negro. Prandini, que lançou também outros livros na coleção "Retratos do Brasil" para personalidades negras, ao contrário de muitos outros livros sobre o Cisne Negro, mostra-nos, com inteligência de contexto histórico-literário, poemas raramente conhecidos do nosso maior Simbolista (muito desse desconhecimento vem do ocultamento das obras feito por Nestor Vítor, a quem Cruz e Sousa confiou os seus originais antes de partir para a morte), sem contar os seus célebres. Além do mais, há as raras cartas publicadas de Cruz e Sousa no final do livro (talvez as poucas que restaram do poeta). É um livro precioso para quem quer conhecer o João da Cruz e Sousa, negro sem mistura, vivendo sua maturidade intelectual numa época em que a mentalidade de escravatura era plena, mesmo com escravidão abolida em lei. É uma biografia de sua obra - e de sua vida.

CHARLES BAUDELAIRE - As Flores do Mal. Tradução: Ivan Junqueira. Ediouro/Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2007. 656 páginas.

Recomendar As Flores do Mal pode soar, de certa forma, uma redundância ao que eu sempre digo nas postagens sobre o Simbolismo. Mas a edição a que me refiro, traduzida por Ivan Junqueira, contém, além de uma cronologia detalhada da vida de Baudelaire, um estudo (por mais complicado que este fique para quem não sabe a língua francesa, pois há muitos trechos de cartas, de poemas em prosas, todos envolvidos num contexto biográfico, para os quais o domínio da língua de Baudelaire é necessário) e comentários acerca de todos os poemas das Flores. Sendo uma edição bilíngue, é muito interessante para aqueles que querem comparar o original com a tradução. Obra de leitura obrigatória para aqueles que apreciam a poesia sugestiva, por vezes terrivelmente inexorável e terrena, por vezes etereal.


Caros leitores do Sacrário das Plangências, eis as minhas recomendações de leitura de agora. Boa leitura!

Abraços, Cardoso Tardelli


quinta-feira, 17 de novembro de 2011

O Caso de Francisca Júlia no Panorama de nossas Letras

Estimados leitores do Sacrário das Plangências, quebrando a sequência do estudo "Um Descobrimento do Simbolismo Brasileiro", mas ainda perambulando nos movimentos literários da época, esta postagem tem como objetivo explorar o curioso caso de Francisca Júlia Da Silva (1871-1920) em nossas letras e de seu inexplicável esquecimento - escancarado após uma edição das obras completas organizada por Péricles Eugênio da Silva Ramos, em 1961, e que servirá de alicerce para uma amostragem das várias fases da "Musa", como era chamada.

A sua obra, sem ser a poesia completa, constitui-se em Mármores (1895), Livros da Infância (1899), Esfinges (1903), Alma Infantil, em contribuição com o seu irmão Júlio César da Silva (1905), além de uma segunda edição de Esfinges, publicada em 1920. Em Esfinges, Francisca Júlia retirou sete composições de Mármores, mas acrescentou quatorze. Na segunda edição de Esfinges, mais poemas foram incluídos.

(Foto: Francisca Júlia, divulgado na "Santos Ilustrada", em 25 de Março de 1899)

Conhecida por seu parnasianismo, Francisca Júlia obteve um reconhecimento do público e da mídia em meados do final do Século XIX e início do Século XX que, para uma mulher, era evidentemente incomum. Não à toa, ao publicar o seu primeiro poema, a descrença de que os versos realmente viriam de uma mão feminina foi imediata. O poema em questão era "Paisagem", e o comentarista Artur Azevedo (o comentário foi feito em 1895). Até mesmo o trabalhadores do jornal em que fora publicado o poema, A Semana, cismados ficaram da origem do poema.

No entanto, com a publicação de Mármores, em 1895, qualquer dúvida de gênero foi findada e, de imediato, Francisca Júlia figurava, em qualidade poética, ao lado da intocável tríade Parnasiana (Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac). Em seu primeiro livro, Francisca Júlia já conseguira uma fama incomum a alguém que pouco havia publicado, sendo louvada, mesmo em seu parnasianismo, pelos Simbolistas da "Padaria Espiritual", no Ceará (movimento literário e social importantíssimo, dentro do qual surgiram grandes poetas do Simbolismo, como Lívio Barreto - 1870 - 1895 - e Lopes Filho - 1868 - 1900) e, posteriormente, pelo movimento Simbolista como um todo.

Esses Mármores foram, para a poesia brasileira, um marco inegável. Era a segunda vez que uma mulher conseguia, na literatura, uma visualização grandiosa ao lado dos homens (a primeira fora ainda no Romantismo com a poetisa, contista e jornalista Narcisa Amália - 1856 - 1924 -, a cujas honras intelectuais da época equivaleram, de certa forma, até mesmo aos grandes poetas da época, como Castro Alves e Fagundes Varela), e o grande entusiasmo que se fez sobre o nome de Francisca Júlia também não a deixou alheia às críticas, como se fazia - felizmente - a qualquer poeta.

Por tais fatos, será que o relembramento destas duas poetisas, tanto Narcisa Amália quanto Francisca Júlia, não seria quase obrigatório pelos movimentos que defendem os direitos das mulheres? De nada adianta o brado contemporâneo sobre uma mulher envolta em cultura se não há uma base historiográfica de quais foram as primeiras brasileiras a obterem uma base cultural comparável àquela quase indestrutível masculina.

Apesar de elogios vários, a poetisa de Mármores foi criticada por ter, em seus versos iniciais, uma influência clara e evidente - beirando o plágio inconsciente - de poetas como Bilac e como Leconte de Lisle (1819-1894), importante parnasiano francês e cujos Poemas Bárbaros (em tradução literal) ecoaram de forma razoável aqui. Dos poemas que perduraram na edição de sua poesia-reunida, ainda lançada quando era viva (lançada em Esfinges, 1903), há um que em muito bate com os vários sonetos sobre Centauras feitos por José-Maria de Heredia (1842-1905), poeta cubano-francês, mas que fez da França sua casa -e seu grande alicerce estético para realizar seu parnasianismo.

DANÇA DE CENTAURAS

Patas dianteiras no ar, bocas livres dos freios,
Nuas, em grita, em ludo, entrecruzando em lanças,
Ei-las, garbosas vêm, na evolução das danças
Rudes, pompeando à luz a brancura dos seios.

A noite escuta, fulge o luar, gemem as franças;
Mil centauras a rir, em lutas e torneios,
Galopam livres, vão e vêm, os peitos cheios
De ar, o cabelo solto ao léu das auras mansas.

Empalidece o luar, a noite cai, madruga...
A dança hípica para e logo atroa o espaço
O galope infernal das centauras em fuga:

É que, longe, ao clarão do luar que empalidece,
Enorme, aceso o olhar, bravo, do heroico braço
Pendente a clava argiva, Hércules aparece...

Glossário (feito por Péricles Eugênio da Silva Ramos):

"Patas, freios: Francisca Júlia, logo no 1º verso, dá a ideia de cavalo. A princípio, os centauros não possuíam patas dianteiras, mas pés. Depois, adquiriram essas patas (...).
Ludo: Folguedo, divertimento.
Polpeando: Ostentando (algo capaz de envaidecer)
Franças: Os ramos mais altos das árvores.
Auras: Brisas
Clava argiva: segundo Apolodoro, Hércules talhava sua clava (nota do blogger: arma curta, em forma de pera), em Nêmea, que ficava em Argos. Argivo também quer dizer grego, em geral"

O parnasianismo dos Mármores foi, em muito, superior ao da famosa tríade brasileira, não obstante. Para muitos, porque "a arte pela arte" de Francisca Júlia encaixava-se perfeitamente com o que já fora praticado na França (talvez uma grande contradição da crítica brasileira, pois esta, ao rebaixar o Simbolismo ao nada, dissera que o Brasil devia parar de querer saber o que ocorre primeiro em Paris para depois ter conhecimento do que escrever. A ideia é de Araripe Júnior, segundo maior crítico da época, e que abraçou a poesia de F. Júlia, lançada depois dos Broqueis e do Missal de Cruz e Sousa (1893), livros para os quais a crítica se referia. Porém, o próprio parnasianismo de Francisca Júlia passava muito além do mero descritivismo típico dos parnasianos célebres do Brasil, quando em suas famas regidas. Vejamos o poema a seguir, também de Mármores:


INVERNO

A João Luso

Outrora, quanta vida e amor nestas formosas
Ribas! Quão verde e fresca esta planície, quando,
Debatendo-se no ar, os pássaros, em bando,
O ar enchiam de sons e queixas misteriosas.

Tudo era queixa e amor. As árvores copiosas
Mexiam-se, de manso, ao resfôlego brando
Da brisa que passava em tudo derramando
O perfume sutil dos cravos e das rosas...

Mas veio o inverno; e vida e amor foram-se em breve...
O ar se encheu de rumor e de uivos desolados...
As árvores do campo, enroupadas de neve,

Sob o látego atroz da invernia que corta,
São esqueletos que, de braços levantados,
Vão pedindo socorro à primavera morta.

GLOSSÁRIO:
Invernia: Inverno rigoroso.

Vemos aqui um típico caso de "parnaso-simbolismo", pois, não chegando a ser um Simbolismo ao modo de Emiliano Perneta ou Cruz e Sousa, chega a ter uma sutilidade na sugestão e na apresentação de imagens, que são, num primeiro momento, jubilosas, cromáticas, e noutro, vagarosas, doloridas, quase incolores (na divisão exata dos quartetos e tercetos), tendo, num verso derradeiro a lembrança saudosa daqueles momentos de cor e alegria descritos, não com apatia, nos quartetos. Sendo, portanto, de um descritivismo-sugestivo, indo em um caminho totalmente contrário ao da "arte pela arte", mesmo que técnicas parnasianas, como enjambement evidentes (segundo verso da primeira estrofe), estejam ainda em evidência.

Sabendo-se que em Esfinges, lançado em 1903, foram acrescentados 14 poemas e excluídos sete dos originais dos Mármores, que viriam fazer parte das Poesias de Francisca Júlia, lançado em 1961, mostrarei uma comparação da poesia mística e realmente Simbolista da poetisa paulista, apesar desta última as características descritas.

CREPÚSCULO

A Maria Clara da Cunha Santos

Todas as cousas têm o aspecto vago e mudo
Como se as envolvesse uma bruma de incenso;
No alto, uma nuvem, só, num nastro largo e extenso,
Precinta do céu calmo a cariz do veludo.

Tudo: o campo, a montanha, o alto rochedo agudo
Se esfuma numa suave água-tinta... e, suspenso,
Espalhando-se no ar, como um nevoeiro denso,
Um tom neuro de cinza empoeirando tudo.

Nest'hora, muita vez, sinto um mole cansaço,
Como que o ar me falta e a força se me esgota...
Som de Ângelus, moroso, a rolar pelo espaço...

Neste letargo que, pouco a pouco, me invade,
Avulta e cresce dentro em mim essa remota
Sombra da minha Dor e da minha Saudade.

GLOSSÁRIO (Péricles Eugênio da Silva Ramos):

"Nastro: Fita estreita.
Preceita: Circunda.
Cariz: Aspecto, aparência atmosférica. O vocábulo é normalmente masculino."


Outro poema de Esfinges, de uma típica esfera Simbolista, mas cuja conclusão relativamente alentada foge do comum de muitos poemas - até mesmo do que foi a própria vida da poetisa.

À NOITE

Eis-me a pensar, enquanto a noite envolve a terra;
Olhos fitos no vácuo, a amiga pena em pouso,
Eis-me, pois, a pensar... De antro em antro, de serra
Em serra, ecoa, longo, um réquiem doloroso.

No alto uma estrela triste as pálpebras descerra,
Lançando, noite dentro, o claro olhar piedoso.
A alma das sombras dorme; e pelos ares erra
Um mórbido langor de calma e de repouso.

Em noite escura assim, de repouso e de calma,
É que a alma vive e a dor exulta, ambas unidas,
A alma cheia de dor, a dor tão cheia de alma...

É que a alma se abandona ao sabor dos enganos,
Antegozando já quimeras pressentidas
Que mais tarde hão de vir com o decorrer dos anos.


GLOSSÁRIO:
Mórbido: Segundo P. Eugênio da Silva Ramos, dual é o sentido da palavra neste poema. Pode ser tanto "suave (como em belas artes) ou doentio".
Exultar: Sentir grande prazer; ter grande alegria.

A evidência de qualidade poética em Francisca Júlia é, ao mesmo tempo, inegável e inacreditável, pois todo este estro foi deixado de lado quando, por incrível que pareça, a sua poesia completa veio a lume, em 1961. Mas, talvez, não foi falta de qualidade que ocasionou o olvido de F. Júlia, foi uma desconfiguração da própria análise e escrita poética pelos próprios poetas - o que configurou numa confusão ao leitor, que já não sabia se lia uma ciência, uma prosa, uma mera epifania não desenvolvida, num deságue dos movimentos pós-modernos, ou uma arte que merecia uma estante somente sua nas livrarias.

Tendo a sua obra alcançado um parnasianismo e um Simbolismo de qualidade, que mereceram destaque e respeito de ambas escolas, que eram rivais, além de ter também Francisca Júlia publicado Lieds (poesia típica alemã), numa tentativa de adaptá-lo ao clima brasileiro, e também traduzido poemas de Goethe, Victor Hugo e Heinrich Heine (entre outras traduções), fica-me ainda em dúvida sobre a legitimidade do esquecimento quase que completo de F. Júlia (não fossem a rua Francisca Júlia, localizada no Alto de Santana, São Paulo (SP) e seu túmulo emérito no Cemitério do Araçá, na quadra 6-A, no terreno perpétuo nº9, que contém a belíssima escultura "A Musa Impassível", de Vítor Brecheret, sobre os despojos da poetisa, por ser campa-fechada, talvez o nome dela mais desconhecido ainda seria; aliás, sobre esse túmulo, no lugar da escultura de mármore está uma réplica de bronze, a pedido das famílias de Francisca Júlia e Vítor Brecheret. A original está na Pinacoteca do Estado). E digo ainda a palavra "legitimidade" de uma maneira vaga, pois é ilegítimo o esquecimento da arte, entendendo esta como um desenvolvimento do ser e de seus sentimentos no espaço e tempo.

(Foto: Escultura 'Musa Impassível' de Vítor Brecheret, já restaurada e na Pinacoteca)

Muitas vezes, num questionamento externo sobre a questão do esquecimento de Francisca Júlia, muitas pessoas falaram "sempre foi assim" ou "a vida é assim". Talvez esteja aí um dos grandes erros de nosso contemporâneo tempo. Ora, a nossa percepção do tempo hoje não é a mesma daquela de cem anos atrás, nem o próprio "contemporâneo esquecimento" pode ser arrastado a um tempo em que nós não vivemos. Toda essa nuvem de conformismo e coma cria nos seres certa sensação de que vivemos um tempo eterno e intranscedente - O Tempo de Todos - o que é inverídico. Por mais que muitas das emoções do ser humano mantenham-se as mesmas - ora, nós ainda temos o porte espiritual humano -, o modo com o qual lidamos com elas difere de tempo em tempo. Ou seja, o esquecimento de Francisca Júlia nem é consequência de um inexorável abraçar da história, nem de uma evolução do ser.

Se as Editoras não mais publicaram, é porque não mais se falou nas escolas, por consequência, em Vestibulares (pois é este o triste panorama do ensino brasileiro). E tampouco em universidades é tateada a poética da paulista, pois, como movimento, o Parnasianismo já tem seus maiores símbolos - e o Simbolismo típico - dois mártires do desdém da crítica da época (Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens). Mas, ao mesmo tempo que me parece didaticamente aceitável, parece-me limitado para a formação de um "ser que é ser" (parafraseando Cruz e Sousa, em seu "Sorriso Interior"). O menor tempo para as humanidades nas escolas é um mal - mas o tempo dado para o Modernismo em Literatura excede a real perspectiva de importância e qualidade literária do movimento, quase que excluindo outros casos anteriores ao movimento - evidentemente não sendo o caso de Machado de Assis.

Portanto, Francisca Júlia configura-se em uma figura importante que, no início do século XX era igual, ou maior, do que a tríade parnasiana, tendo fama equivalente (tanto é que muitas das fontes sobre ela estão em Jornais, que sempre publicavam entrevistas com a poetisa). Para P. Eugênio da Silva Ramos, talvez o fato dela ter publicado poucos poemas tenha prejudicado a fixação da imagem dela na Literatura Brasileira. Com os seus sessenta e poucos poemas originais - sem contar as traduções - ela já vai além dos quarenta e oito poemas de Camilo Pessanha (1867-1926), por exemplo, que constavam em sua Clepsidra, lançada em 1920, único livro seu e que, não obstante do pequeno tamanho, marcou história na literatura portuguesa.

Como já antes disse em uma postagem anterior, há um benéfico movimento das editoras para que os clássicos sejam re-lançados, inclusive passando pelas obras completas de Olavo Bilac, Cruz e Sousa, Antônio Nobre (simbolista português), Camilo Pessanha, entre outros. Talvez seja a hora de re-lançar a obra de Francisca Júlia, a quem cujo nome sempre é evocado numa andança na Pinacoteca, por exemplo, ao avistar a "Musa Impassível", de Vítor Brecheret, que é quase que incompreensível se separada da obra da poetisa, pois muito faz referência ao dueto de sonetos "Musa Impassível" e ao "Dança das Centauras". A esperar algum movimento das editoras.

Abraços, Cardoso Tardelli

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Um descobrimento dos Simbolistas Brasileiros - Parte V

Estimados leitores do Sacrário das Plangências, nesta quinta parte do descobrimento do Simbolista Movimento Brasileiro, trabalharemos com parte da prosa poética do estilo, utilizando somente um versificador.

POETAS SIMBOLISTAS:

Nestor de Castro (1867 - Antonina (PR) - 1906 - Curitiba)
Essencial jornalista do movimento, escrevendo em publicações como Gazeta do Povo e a Tribuna do Povo, foi um polemista de primeira linha e considerado um dos maiores jornalistas do Paraná. Em seu livro Brindes, o feitio Simbolista é evidenciado por imagens vagas, sugestivas e lancinantes - além das várias maiúsculas individualizadoras. Os seus maiores textos literários estão dedicados aos grandes Simbolistas paranaenses, como Emiliano Perneta, Rocha Pombo, Silveira Neto.

INVERNO

A Dário Vellozo

Inverno! Inverno! duro espículo alfinetante dos gelos; atros fantasma nebuloso da úmida Sibéria triste, que vens rolando às fortes enxurradas polares das luas novas de Junho*, eu sinto a tua espinescente algidez de morte, como se fora a sangradora unha torsa de um urso branco da Groenlândia, ferir as fantasias bizarras do meu Sonho!...
Inverno!... Inverno!... sepulcro das minhas emoções moças, que mumificas as nuas formas anacreônticas e pindarescas dos plectros; tu, que na superfície alagada dos marnéis queimas, como a impiedade dos teus suspiros de neve, os amolecidos tufos modorrentos dos liriais do norte; tu, espetro sombrio das tristezas zodiacais do Ano, fazes também rolarem nas enxurradas das luas novas de Junho todas as minhas calmas esperanças verdes, nascidas ao clarear das grandes estrelas rútilas do estio...
Detesto-te, ó exótico pesadelo torvo, quando mortificas a minha sensibilidade toda, fustigando o álacre relicário dos meus afetos puros!...
Sinto-te, apalpo-te; ouço o teu soluço cavo no ronronar da ventania úmida e, te pões então a escavar o largo chão duro por onde desfilaram, como sombras defuntas, as claras alegrias auroreais das paixões antigas...
Gelos da Irlanda! Gelos da morte!... Eis as cinzas fugidas dos meus desejos que se vão, revoltos, através da levadia, onda zimbradora dos pesares, por onde eu avisto um último aceno demorado de risos que não voltam...
Inverno! Inverno! Deita-me afogar agora, num último raio quente de lágrima, a vaporosa lágrima adusta das minhas queridas mágoas inspiradoras...
Vai-te, sepulcro álgido e torturante dos meus sonhos!...

(Em Brindes, de 1899)

*Notem que o conceito de Inverno no parágrafo já está ligado à referência climática brasileira, não à estrangeira, como comumente eram feitos esses tipos de referências - e como o próprio texto deixou desaguar por intermédio de seus Símbolos ("Gelos da Irlanda! Gelos do Norte!"). Sempre notando que a Neve é totalmente "brasileira, real e válida", considerando que a região do Paraná fica sob o efeito do clima temperado.

GLOSSÁRIO:
Atro: Negro, obscuro, lúgubre, funesto.
Espinescente: Que toma forma de espinhos.
Algidez: Gélido, muito frio, frígido, qualidade do que é álgido.
Torsa: Torcido, sinuoso, tortuoso.
Anacreôntica: Relativo ao poeta grego Anacreonte (c.570 - 485 a.C), um dos grandes - mesmo que pouca coisa conheça-se dele - cantores do Amor de sua época.
Pindarescas: Relativo ao poeta grego Píndaro (c. 520-420 a.C.). Figurado: pode significar tanto obscurantismo lírico quanto excelência.
Plectro: No caso, inspiração poética (o uso figurado da palavra).
Marnel: Pântano.
Torvo: Que causa terror, iracundo; pavoroso, sinistro.
Álacre: Alegre, ledo, entusiasmado, risonho.
Ronronar: Rumor contínuo provocado pela traqueia do gato.

Graça Aranha (1868 - São Luís do Maranhão - 1931 - Rio de Janeiro)
Romancista vindo do Naturalismo, Graça Aranha exerceu um papel essencial nas nossas letras - sendo um dos fundadores da ABL. Inclinou-se pelo ambiente de mística e introspecção altiva do Simbolismo em seu Canaã, de 1901. Mesmo assim, segundo Andrade Muricy, a obra não atingia a perfeição de um "No Hospício", de Rocha Pompo. Canaã, em sua época de lançamento, obteve diversas recepções, sendo aclamado por José Veríssimo - lembrem sempre que ele foi um inimigo dos Símbolos -, mas por este não sendo colocado nem como romance, nem como poema em prosa. Em Malazarte, lançado em 1910, o acento Simbolista de Graça Aranha chegaria ao exagero, segundo Andrade Muricy.

E dois imigrantes, no silêncio dos caminhos...

E dois imigrantes, no silêncio dos caminhos, unidos enfim numa mesma comunhão de esperança e admiração, puseram-se a louvar a Terra de Canaã.
Eles disseram que ela era formosa com os seus trajes magníficos, vestida de sol, coberta com o manto do voluptuoso e infinito azul; que era amimada pelas coisas: sobre o seu colo águas dos rios fazem voltas e outras enlaçam-se a cintura desejada; as estrelas, numa vertigem de admiração, se precipitam sobre ela como lágrimas de uma alegria divina; as flores a perfumam com aroma estranho, os pássaros a celebram; ventos suaves lhe penteiam e frisam os cabelos verdes; o mar, o longo mar, com a espuma de seu beijo afaga-lhe eternamente o corpo...
Eles disseram que ela era opulenta, porque no seu bojo fantástico guarda a riqueza inumerável, o ouro puro e a pedra iluminada; porque os seus rebanhos fartam as suas nações e o fruto das suas árvores consola o amargor da existência; porque um só grão das suas areias fecundas fertiliza o mundo fertilizaria o mundo inteiro e apagaria para sempre a miséria e a fome entre os homens. Oh! poderosa!...
Eles disseram que ela, amorosa, enfraquece o sol com as suas sombras; para o orvalho da noite fria tem o calor da pele aquecida, e os homens encontram nela, tão meiga e consoladora, o esquecimento instantâneo da agonia eterna...
Eles disseram que ela era feliz entre as outras,porque era a mãe abastada, a casa de ouro, a providência dos filhos despreocupados, que a não enjeitam por outra, não deixam as suas vestes protetoras e a recompensam com o gesto perpetuamente infantil e carinhoso, e cantam-lhe hinos saídos de um peito alegre...
Eles disseram que ela era generosa, porque distribui os seus dons preciosos aos que deles têm desejo; a sua porta não se fecha, as suas riquezas não têm dono; não é perturbada pela ambição e pelo orgulho; os seus olhos suaves e divinos não distinguem as separações miseráveis; o seio maternal se abre a todos como um farto e tépido agasalho... Oh! esperança nossa!
Eles disseram estes e outros louvores e caminharam dentro da luz...

(Em Canaã, segunda edição)

GLOSSÁRIO:
Bojo: Âmago, cerne (por extensão: sacrário).
Tépido: Que tem pouco calor. Fig: frouxo, fraco.

Mário Perdeneiras (1868 - Rio de Janeiro - 1915 - Rio de Janeiro).
Um dos primeiros introdutores do verso livre em nossa poesia, foi Mário Perdeneiras um poeta fino, musical e, mesmo pertencendo ao segundo grupo Simbolista, era um claro entusiasta da Poesia, como um todo, sendo leitor de Bilac, de Alberto de Oliveira (ambos da tríade Parnasiana), além de sofrer uma grande influência de Cesário Verde e Antônio Nobre, expoentes do Simbolismo lusitano.

DESOLAÇÃO

Pela Estrada da Vida ampla - coberta
De um longo velo pesaroso e baço,
Hás de encontrá-la muita vez alerta
Na longa rota do teu longo passo.

Por caminhos de pedras e sargaço
Há de levantar-te pela mão incerta,
Até que exausto em Mágoas e Cansaço
Te seja a Vida intérmina e deserta.

Verás em tudo Solidão e Escolhos
E da Tristeza a tétrica figura
Estampada trarás nos próprios Olhos.

E então em Mágoas e Pavor clamando
Hás de vê-la passar na Noite escura
A mortalha dos sonhos arrastando.

(Em Rondas Noturnas, publicado em 1901)

GLOSSÁRIO:
Baço: Sem brilho, bacento.
Sargaço: Gênero de algas que ocupam grande espaço ao atingir o alto mar (iniciam o seu crescimento nas costas tropicais).
Escolho: No caso: obstáculo, dificuldade.


TRECHO FINAL

Meia-tinta de cor dos ocasos do Outono,
Sonho que uma ilusão sobra a vida nos tece
E perfume sutil de uma folha de trevo
São, decerto, a feição deste livro que escrevo
Neste ambiente de silêncio e sono,
Nesta indolência de quem convalesce.

Meu livro é um jardim na doçura do Outono
e que a sombra amacia
De carinho e de afago
Da luz serena do final do dia;
É um velho jardim dolente e triste
Com um velho local de silêncio e de sono
Já sem luz de verão que o doire e tisne,
Mas onde ainda existe
O orgulho de um Cisne
E a água triste de um Lago.

(Em Outono, 1921)

GLOSSÁRIO:
Convalescer: Restabelecer a saúde; recuperar-se.
Tisnar: Tornar negro como o carvão; manchar, macular.

Caros leitores do Sacrário das Plangências, como demonstrado, muitos Símbolos utilizados pelos autores tinham clara "residência" fixada na brasiliana terra, resumindo a um erro qualquer pensamento anulativo no sentido de julgar o Simbolismo como um movimento literário internacional seguido literalmente por brasileiros. E o grande ponto que há de se fazer aqui é: o Símbolo não encontra limites ufanistas que são alicerçados por intermédio de fronteiras geográficas - e até mesmo linguísticas; o Símbolo é o encontro do leitor com a ânsia do escritor num panorama vago, sugestivo, moroso, além da concretude da primeira impressão.

Não à toa, a temática Mística foi uma das grandes bases do movimento - no alento de que, por meio de uma transcendência prometida, o ser se encontrasse consigo mesmo numa perspectiva do Além. Argumento este que pode soar irrisório, mas, como a poetisa Francisca Júlia disse, em certa entrevista de 1908 - no auge de sua fama: "(os homens nos centros civilizados) vão perdendo aos poucos, nos atritos da luta pela vida, a delicada flor do misticismo e tornam-se genuinamente céticos". Vivendo o início da urbanização paulistana, de fato não errou no dado - que, por acontecimento infeliz, era um fado.

Abraços, Cardoso Tardelli