terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Um Descobrimento dos Simbolistas Brasileiros - Parte IX

Caros leitores do Sacrário das Plangências, continuando com o estudo "Um descobrimento dos Simbolistas Brasileiros", discorrerei sobre algumas das mais importantes figuras dentro do movimento, mas cujas obras poéticas pouco tiveram reverberação, muito pelo malogro que já perambulava o movimento após os julgamentos de José Veríssimo sobre os livros primeiros de Cruz e Sousa - Missal e Broquéis -, lançados em 1893. Em dois dos três casos que serão relatados, as obras estavam (e ainda estão) esparsas e deram a Andrade Muricy - lembro-lhes que a fonte é o Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro - grande trabalho para a reunião de uma pequena quantidade de poemas para o livro. Isso ocorreu muito no movimento Simbolista brasileiro devido à grande quantidade de publicações periódicas, efêmeras na medida que convinham-lhes, nas quais os autores sentiam-se confortáveis em publicar e ficar fora de qualquer julgamento com base na delinquência do radicalismo.

AUTORES SIMBOLISTAS:

Severiano de Resende (1871 - Mariana - MG - 1931 - Paris):

De vida turbulenta desde os seus tempos acadêmicos (fora jubilado por defender, solitariamente, um professor de ideias monarquistas), foi o melhor amigo de Alphonsus de Guimaraens - tendo este lhe dedicado grande afeição artística e religiosa, dedicando-lhe o livro Setenário das Dores de Nossa Senhora - e um grande polemista, seja em sua vida sacerdotal, abandonada a contra-gosto, ou em sua carreira jornalística. Residindo em Paris no início do século XX, colaborou na Mercure de France, a mais importante revista Simbolista mundial, com a seção  "Lettres Brésiliennes". Segundo Andrade Muricy, "Severiano de Resende foi panfletário audacioso; hagiógrafo irreverente, e poeta de talento".

O HIPOGRIFO

A  José Freitas Vale

Resfólega o hipogrifo, indômito, batendo
No asfalto as patas d'oiro, e os olhos de água adusta
Sobre as nuvens e além dos sóis ovante erguendo,
Já no azul a cabeça em fogo barafusta.

O éter transpõe, aflando as asas, belo e horrendo,
E haurindo a Vida e a Graça e a Ideia eterna e augusta,
Oh! como eu nesse arroubo insofrido compreendo
Que ao estranho hipogrifo o gesto astral não custa.

No solo os áureos pés, no empíreo em glória a fronte,
Terras, mares e céus, de horizonte a horizonte,
Mede, calcando o pó, e os páramos transcende.

Brotam fráguas de luz e na poeira dos seus rastros
E nas landas glaciais e tristes, ermas de astros,
Novas constelações o seu hálito acende.

(Em Mistérios, de 1920)

GLOSSÁRIO:
Hipogrifo: Animal fabuloso, alado, metade cavalo, metade grifo (que é metade leão e águia).
Adusta: Muito quente, fervente.
Ovante: Triunfante.
Barafustar: Movimentar-se com violência.
Éter: Por extensão: o espaço celeste.
Haurir: Sorver, retirar, beber, esgotar.
Arroubo: Êxtase, enlevo.
Empíreo: Relativo ao Céu; superior,.
Páramo: Planície deserta.
Frágua: Calor intenso. 


TEOFANIA

Certo novas terás deste homem pardo
De hirsuto pelo e de melena ao vento:
Tem no jarrete o nervo do leopardo
Nos marnéis galopando de espavento.

É Leviatã e Behemoth, e luta
Como os mamuts*, como os megalossauros
Na expansão de uma força resoluta
Comandando ciclopes e centauros.

Desde os confins das brumas hiperbóreas
O seu rastro traçou tortuosas sendas:
Dele contam-se horríficas histórias,
Narram-se dele tétricas legendas.

Quantas línguas possui e quantos dentes,
Quantos idiomas há no seu regougo?
Lança dos olhos chispas transcendentes
E da fauce vomita sangue e fogo.

Nas suas múltiplas metamorfoses
Assemelha-se aos ogros e aos onagros
E imita muita vez do vento as vozes
Pela noturna solidão dos agros.

Não cuides, filha, que ele é o lobisomem
Noctambulando nos teus pesadelos:
Essa abantesma é simplesmente um Homem
E os seus mistérios quem há de entendê-los?

Antes que o mundo conflagrando-se arda
No desmoronamento derradeiro,
Saberás de repente que não tarda
A aparecer o grande Aventureiro.

Certo novas terás desse homem pardo
De hirsuto pelo e de melena ao vento:
Tem no jarrete o nervo do leopardo
Nos marnéis galopando de espavento.

Roga pois aos teus anjos tutelares
Que removam de ti o horrendo aspeito
E se um dia por ele resvalares
Traça o sinal da cruz sobre o teu peito.

E que nunca essa elétrica pupila
A alma te escute e o verbo lhe ouças nunca...
Não mais então serias tu tranquila
Sob a ameaça da sua garra adunca.

Já o seu tropel estrepitoso atroa...
Filha, sossega o coração e dorme.
Eu rezarei vesperalmente a noa
Que há de guardar-te da Ilusão enorme.

(Em Mistérios)

* No original está "mammuths", exagero típico dos Simbolistas que praticavam livre galicismo (no Francês, é mammouth); a grafia correta da palavra - mamute - é trissílaba e quebraria com a métrica, sendo preferível a optada por Andrade Muricy, em sua revisão.

GLOSSÁRIO:
Hirsuto: De pelos longos e duros.
Melena: Cabelos longos.
Jarrete: Nervo ou tendão dos quadrúpedes.
Marnel: Pântano.
Espavento: Espanto, susto; pompa.
Leviatã: Monstro do caos; na bíblia, criatura réptil ou aquática.
Ciclope: Na mitologia, monstro com um só olho.
Hiperbóreas: Do extremo norte da terra.
Regougo: Voz da raposa; ronco.
Agro: Acre, amargo, inclemente.
Estrepitoso: Que produz estrépito, portanto, um ruído muito forte.
Atroar: Fazer estremecer com um estrondo.
Noa: Na liturgia católica, hora canônica correspondente às três da tarde.

Alves de Faria (1871 - Maceió - 1899 - Maceió):

Bacharelado em  Direito pela Faculdade de Direito do Recife em 1891, chegou a obter o cargo de juiz em Sergipe, não o impedindo de escrever poesia e de participar de publicações literárias da época; aliás, foram os órgãos de imprensa o único meio pelo qual Alves Faria publicou, deixando toda a sua obra esparsa. Nefelibata assumido, o que, para a época, era correr sérios riscos relativos aos cargos públicos, defendia a prosa rimada, estilo sobre o qual também, segundo ele, era necessário um abraçar de certa rigidez parnasiana. Morreu jovem, aos 28 anos e três meses, a 25 de junho de 1899.

ABRINDO UM LIVRO

A - sombra geme aqui. Ruínas este soneto.
A - arcaria da frase é um esgarado momo
e sobre este papel erguem-se os versos como
velhos muros de pedra ou restos de esqueleto.

A imagem lembra um curso e triste cinamomo,
onde a hera da dor se enrosca ao tronco preto
e passeia através da quadra e do terceto
a saudade que reza, em religioso assomo.

Senta-se a mágoa sobre os escombros dispersos
do hemistíquio onde bate o coração dos versos,
e em derredor rasteja o verme dos gemidos.

E como um braço, amor, que no outro braço arrima,
cai em música estranha a rima sobre a rima,
num sonoro rumor de mármores partidos.

(Em Novidades, Rio, 05 de Março de 1891)


GLOSSÁRIO:
Esgarado: Neologismo derivado de esgarrão - ou seja, jogo popularesco. Os dois erres não convinham à musicalidade do poema.
Momo: Pequena farsa popular.
Hera: Plantas trepadeiras.
Cinamomo: Arvore caneleira.
Assomo: Manifestação, ocorrência.
Hemistíquio: Metade de um verso alexandrino.

BATRÁQUIO

À noite, ao astral palor das estrelas na altura,
ao coaxar das rãs monótono nos brejos,
sai vagaroso e triste, em corcovos cortejos,
o sapo, o vil batráquio, a imunda criatura!

Anfíbio, venenoso, ovíparo, a estatura
não lhe mede jamais seus íntimos desejos.
Tem despeito do céu! - e ulula uns vão arpejos
à toalha astral de crivo estrelejada e pura!

Tão baixo que ele o é! tão pequenino e imundo!
E olha e divide e anseia andar, mundo por mundo,
aos saltos bruscos por a constelada esfera!

Calcula a força e o grau do seu profundo gozo,
se de um salto pudesse, ele, tuberculoso!
cuspir, babar a sã poliestelar quimera!

1897 - Signo de Aquarius

(O Cenáculo, tomo IV, 1897, pág. 151)

GLOSSÁRIO:
Batráquio: Anuro: anfíbio caracterizado pela cabeça fundida ao corpo e pela ausência de cauda.
Palor: Palidez.
Coaxar: A voz das rãs e sapos.
Corcovos: Salto cujo movimento é baseado na curvatura do dorso.
Crivo: Objeto muito esburacado.

Ricardo de Lemos (1871 - Morretes - PR - 1932 - Curitiba):

Patrono da cadeira nº37 da Academia Paranaense de Letras, Ricardo de Lemos configurou-se num dos típicos casos de um poeta retraído, sustentando-se por meio de um trabalho público no Estado e, assim como vários outros poetas, no ofício jornalístico, não obstante, sendo um poeta aclamado na fase mais ortodoxa do movimento. Segundo Andrade Muricy, a poesia de Ricardo de Lemos "é de bom gosto e sentimento discreto". A parte essencial de sua obra continua dispersa.

DESLUMBRAMENTO

A Romário Martins

Sinto, através daquele olhar sereno,
Olhar de Cristo, piedoso e triste,
Num abraço, que é todo o meu veneno,
Nostalgias de azul que não existe.

E ele, que em pleno abrir de aurora, em pleno
Fulgor de sol ao próprio sol resiste,
Se me ilumine, é dum luar ameno,
Onde a mancha das nuvens não se aviste.

Angélica expressão das cousas mansas,
Por ele vejo e escuto, em doce enleio,
Rostos de mães e risos de crianças...

A Morte, quando esse astro se apagar,
Certo, ao coveiro há de dizer, eu creio:
- "Repara se inda há luz naquele olhar..."

(Em Breviário, ano I, nº1, Agosto de 1900, pág.21)

UM ANJO

Vai para um cemitério, as mãos em cruz
Sobre o gelado peito.
O pai, sozinho, sem chorar, conduz
O pequenino leito.

Rude aldeão que andava à chuva, ao frio,
Ele tinha também
Ânimo forte, espírito sadio
Como bem poucos têm.

Além disso não era a vez primeira
Que, cheio de conforto,
Ele levava à estância derradeira
Algum filhinho morto.

À noite, adoecera o camponês,
E a sua doce amiga
Perguntou-lhe o que tinha... - "Pois não vês?
Sinto grande fadiga...

O caixãozinho que eu levei ao ombro
De tarde, à luz suave do arrebol,
Pesava mais - disse ele com assombro -
Que vinte enxadas trabalhando ao sol!..."

(Rodrigo Júnior e Alcibíades Plaisant, Antologia Paranaense, Tomo I, Poesia, págs. 306-307)

GLOSSÁRIO:
Arrebol: Vermelhidão do nascer ou pôr-do-sol.


Caros leitores do Sacrário das Plangências, finda está aqui a parte nona deste estudo. Somente por adendo, digo que Andrade Muricy, em sua introdução, conta-nos que houve um grande problema com os familiares de alguns poetas no momento em que ele pediu os autógrafos-originais que, em alguns casos, eram os únicos rastros poéticos de certos autores. A sociedade, com o fácil esforço da difamação, conseguiu com que os Simbolistas, depois chamados de Nefelibatas, Decadentes (todos adjetivos encorporados ao estilo, em certo tom de provocação e de não-ofensa), fossem uma vergonha para muitas famílias, por terem sido de um estilo que evocava a transcendência, a perscrutação e até mesmo a queda da alma - tudo para não ficarem neste mundo. 
Muito disto pelo estilo ser considerado Satanista. A presença de Satã no estilo vem desde Baudelaire e, em muitos casos, não passou de pose ou uma evocação íntima ao pecado, pois quase todo o estilo estava profundamente ligado ao catolicismo - qual a própria imagem de Satã, como referido nos poemas.

Abraços,
Cardoso Tardelli

Nenhum comentário:

Postar um comentário