sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O Veredicto de Cruz e Sousa acerca do Abolicionismo

Caros leitores do Sacrário das Plangências, esta postagem será um pouco diferente das demais encontradas neste blog. Pouco discorrerei - pois o texto que transcreverei já muito expõe por si. É um precioso documento histórico-literário escrito por Cruz e Sousa (1861-1898), em 1887, e que foi publicado em 22 de Julho do mesmo ano, no periódico Renegação, portanto, um pouco menos de um ano antes da Lei Áurea - que determinou o fim da escravidão nas brasilianas terras.

(Na foto: Cruz e Sousa)

Cruz e Sousa, filho de escravos, negro sem mescla, participou com alento das campanhas abolicionistas, mas, como sabemos, uma lei, tão somente, não liberta a mentalidade escravocrata de um povo e tampouco cria meios pelos quais os recém-libertados negros possam se sustentar. No livro biográfico Cruz e Sousa, de Paola Prandini, do Selo Negro, há uma análise um tanto ingênua dos problemas evidentes das leis envolvendo a escravidão brasileira (inclusive acerca das abolições no Ceará e no Amazonas, em 1884, anteriores à abolição geral). Quando lemos "entre os resultados nefastos desse descaso" para caracterizar como fora a ação dos movimentos pró-abolicionistas e da abolição, em si, há um real descaso para com o contexto histórico da época.
Muitos talvez não tenham ainda compreendido que a escravidão, instituição medonha e malograda, era o único meio de subversão social e trabalhista no qual viu-se a sociedade durante séculos, tornando, não obstante os movimentos de abolição, a escravidão uma sombra fixa na sociedade e que dificilmente seria posta frente à frente com uma luz justa como a da liberdade e da justiça social. Um dos exemplos que podemos dar é a Revolta dos Malês, em 1835, que, apesar de ser promovida por escravos, tinha caráter escravocrata. O fato é que o escravismo estava socialmente enraizado no Brasil e livrar-se desse meio desse meio de exploração, como vimos, não era somente uma questão de boa-vontade, mas uma questão de superação de um tempo e de privilégios. 

Veremos, após a leitura do texto de Cruz e Sousa, retirado do citado livro de Paola Prandini, veremos que a ideia de uma libertação organizada já era  pensada pelo Cisne Negro, cujo ideal  e gênio sempre estiveram além de seu tempo. Mais do que ninguém, ele sabia que não bastava a liberdade: necessitava-se de uma nova sociedade.

O ABOLICIONISMO - Cruz e Sousa

A ação que o Abolicionismo tem tomado nesta capital é profundamente significativa. Nem podia ser menos franca e menos sincera a adesão de todos a esta ideia soberana, à vista dos protestos da razão humana, do patriotismo e caráter nacional ante tão bárbara e absurda instituição - a do escravagismo.

A onda negra dos escravocratas tem de ceder lugar à onda branca, à onda de luz que vem descendo, descendo, como catadura do sol, dos altos cumes da ideia, preparando a pátria para a organização futura mais real e menos vergonhosa. Porque é preciso saber-se, em antes de se ter uma razão errada das coisas, que o Abolicionismo não discute pessoas, não discute indivíduos nem interesses: discute princípios, discute coletividade, discute fins gerais.

Não vai unicamente pôr-se a favor do escravo pela sua posição tristemente humilde e acobardada pelos grandes e pelos maus, mas também pelas causas morais que o seu individualismo traz à sociedade brasileira, atrasando-a e conspurcando-a.

Não se liberta o escravo por pose, por chiquismo, para que parece a gente brasileira elegante e graciosa ante as nações disciplinadas e cultas. Não se compreende, nem se adaptando ao meio humanista a palavra escravo, não se adapta nem se compreende da mesma forma a palavra senhor.

Tanto tem de absurda, de inconveniente, de criminosa, como aquela. Se a humanidade do passado, por uma falsa compreensão dos direitos lógicos e naturais, considerou que podia apoderar-se de um indivíduo qualquer e escravizá-lo, compete-nos  a nós que somos um povo em via de formação, sem orientação e sem caráter particular de ordem social, compete-nos a nós, dizíamos, fazer desaparecer esse erro, esse absurdo, esse crime.

Não se pense que com a libertação do escravo virá o estado de desorganização, de desmembramento no corpo ainda não unitário do país.

Em toda revolução, ou preparação de terreno, para um progresso político seguro, em todo desenvolvimento regulado de um sistema filosófico ou político têm de haver, certamente, razoáveis choques, necessários desequilíbrios, do mesmo modo que pelas constantes revoluções do solo, pelos cataclismos, pelos fenômenos meteorológicos, descobrem-se terrenos desconhecidos, minerais preciosos, astros e constelações novas. O desequilíbrio ou o choque que houve não pode ser provavelmente sensível, fatal para a nação. Às forças governistas competem firmar existência de trabalho do homem tornado repentinamente livre, criando métodos intuitivos e práticos de ensino primários, colônias rurais, estabelecimentos fabris etc.

A escravidão recua, o Abolicionismo avança seguro, convicto, como uma ideia, como um princípio, como uma utilidade. Até agora o maior poder do Brasil tem sido o braço escravo: dele é que parte a manutenção e a sustentação dos indivíduos dos pais dinheirosos; com o suor escravo é que se fazem deputados, conselheiros, ministros, chefes de Estado. Por isso no país não há indústria, não há índole da vida prática social, não há artes.

Os senhores filhos de fazendeiros não querem ser lavradores, nem artífices, nem operários, nem músicos, nem pintores, nem escultores, nem botânicos, nem floricultores, nem desenhistas, nem arquitetos, nem construtores, porque estão na vida farta e fácil, sustentada e amparada pelo escravo dos pais, que lhes enche a bolsa, que os manda para as escolas e para as academias.

De sorte que, se muitas vezes esses filhos têm vocação para uma arte que lhes seja nobre, que os engrandeça mais do que um diploma oficial, são obrigados a doutorarem-se porque se lhes diz muito isso não custa e que poderão, tendo o título, ganhar mais facilmente e até sem merecimento, posições muito elevadas; e mesmo porque, ser artista, ser arquiteto, ser industrial etc. é uma coisa que, no pensar acanhado dos escravocratas, dos retrógrados e dos egoístas, não fica bem a um nhonhô nascido e criado no conforto, no bem-estar, no gozo material da moeda dada pelo braço escravo."

Bem vimos que Cruz e Sousa estava empolgado com o avanço do Abolicionismo e de suas causas, mas cria numa ação governamental para impedir uma ruptura maior num país cujos alicerces sociais e políticos eram frágeis. O poeta, no caso, demonstrava a percepção de que, libertando os escravos, o país encontraria-se de uma maneira como nunca se encontrou e os riscos disso, sem os devidos cuidados, era o caos tanto brindado aos negros quanto aos ricos. Sabemos que os ricos trouxeram mão-de-obra estrangeira - e os negros erraram a esmo numa sociedade sem escravidão em lei, mas plena dela em mente.

Abraços,
Cardoso Tardelli

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