terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Os Poemas Condenados de Baudelaire; Rimbaud e os Simbolismos

Caros leitores do Sacrário das Plangências, talvez seja de conhecimento de muitos a punição recebida por Charles Baudelaire (1821-1867) por ter incluído, em suas Flores do Mal, seis poemas que foram considerados de total ultraje à moral pública. Os poemas referidos são "Lesbos", "Mulheres Malditas - Delfina e Hipólita", "O Letes", "À que está sempre alegre", "As Jóias", "As Metamorfoses do Vampiro". A punição fora, além da retirada dos poemas das Flores do Mal, uma multa de trezentos francos a Baudelaire - e de cem francos a cada editor envolvido no processo de concepção do livro. Não muitos detalhes há de se dar no parágrafo introdutório sem ser o de que o acusador, Ernest Pinard, fora o mesmo que pusera em julgamento o Madame Bovary, de Gustave Flaubert (1821-1880). As traduções que serão usadas na postagem são de Ivan Junqueira, encontradas numa ótima edição da Nova Fronteira, para os poemas de Baudelaire, e de Ivo Barroso, numa edição esplêndida da Topbooks, para os poemas de Rimbaud.

(Na foto: Charles Baudelaire)

Os seis poemas, apesar de trazerem bases temáticas diferenciadas, têm como tema base a sexualidade (os mais assíduos leitores de Baudelaire sabem que eles retratam alguns celebres romances do autor, com metáforas ou não, o poema "O Letes", por exemplo, retrata o ciclo amoroso do poeta com Jeanne Duval). O que talvez a corte que julgou os poemas de Baudelaire não esperava é que, ao adiar a publicação dos cantos, não somente fizeram-nos maiores, mas também criaram uma ânsia por uma estética jocosa, até às vezes deselegante (exatamente com esse intuito), cujo auge se fez na figura de Arthur Rimbaud (1854-1891). Acerca do Letes de Baudelaire, para esclarecer um pouco o que é o "Rio Letes", basta dizer que é um dos rios do Inferno de Hades, no qual corre a água do total esquecimento. O tema foi muito usado pelos Românticos, principalmente por Keats.

O LETES - Trad: Ivan Junqueira

Vem ao meu peito, ó surda alma ferina,
Tigre adorado, de ares indolentes,
Quero aos meus dedos mergulhar frementes
Na áspera lã de tua espessa crina;

Em tuas saias sepultar bem junto
De teu perfume a fronte dolorida,
E respirar, como uma flor ferida,
O suave odor de meu amor defunto.

Quero dormir o tempo que me sobre!
Num sono que ao da morte se confunde
Que o meu carinho sem remorso inunde
Teu corpo luzidio como o cobre.

Para engolir-me a lágrima que escorre
O abismo de teu leito nada iguala;
O esquecimento por teus lábios fala
E a água do Letes nos teus lábios corre.

O meu destino, agora meu delírio,
Hei de seguir como um predestinado;
Mártir submisso, ingênuo condenado,
Cujo fervor atiça o seu martírio,

Sugarei, afogando o ódio malsão,
Do mágico nepentes o conteúdo
Nos bicos desse colo pontiagudo,
Onde jamais pulsou um coração.


Apesar de ser clara a evocação da lubricidade na estrofe final e no trecho "Em tuas saias sepultar bem junto", e mesmo vendo com os olhos do Século XIX, não creio que esse poema tenha a evocação maldosa de muitos das Flores do Mal. Aliás, em muitos casos, os poemas proibidos nada mais são que cantos que demonstram a evolução de certos temas na mente de Baudelaire, desaguando em vários clássicos que encontramos no livro.
Sabe-se que Victor Hugo (1802-1885), não obstante o espanto da sociedade, agraciou Baudelaire com os méritos de grande poeta e de revolucionário, alegando também que era uma grande honra para um poeta ser punido pela corte de Napoleão III; Flaubert também elogiara o polêmico poeta, dizendo que as Flores do Mal haviam renovado o Romantismo - e bem sabemos que o movimento Simbolista, de fato, é um subsequente do Romântico. As polêmicas dos poemas de Baudelaire, portanto, nada mais foram que uma amostra mais aberta do que o próprio movimento Romântico já havia feito: o amor carnal fora representado pelos Românticos de uma forma sutil, até pelo brasileiro Castro Alves (1847-1871), cujas Espumas Flutuantes, de 1870, exalam um Romantismo erótico.

Seguindo a linha de que os poemas proibidos "são uma exposição clara do que fora o velho Romantismo", transcrevo "As Metamorfoses do Vampiro":

AS METAMORFOSES DO VAMPIRO - Trad: Ivan Junqueira

E no entanto a mulher, com lábios de framboesa,
Coleando qual serpente ao pé da lenha acesa,
E o seio a comprimir sob o aço do espartilho,
Dizia, a voz imersa em bálsamo e tomilho:
- "A boca úmida eu tenho e trago em mim a ciência
De no fundo de um leito afogar a consciência.
As lágrimas eu seco em meus seios triunfantes,
E os velhos faço rir com o riso dos infantes.
Sou como, a quem me vê sem véus a imagem nua,
As estrelas, o sol, o firmamento e a lua!
Tão douta na volúpia eu sou, queridos sábios,
Quando um homem sufoco à borda dos meus lábios,
Ou quando o seio oferto ao dente que o mordisca,
Ingênua ou libertina, apática ou arisca,
Que sobre tais coxins macios e envolventes
Perder-se-iam por mim os anjos impotentes!"

Quando após me sugar dos ossos a medula,
Para ela me volvei já lânguido e sem gula
À procura de um beijo, uma outra eu vi então
Em cujo ventre o pus se unia à podridão!
Os dois olhos fechei em trêmula agonia,
E ao reabri-los depois , à plena luz do dia,
A meu lado, em lugar do manequim altivo,
No qual julguei ter visto a cor do sangue vivo,
Pendiam do esqueleto uns farrapos poeirentos,
Cujo gripo lembrava a voz dos cata-ventos
Ou de uma tabuleta à ponta de uma lança,
Que nas noites de inverno ao vento se balança."

A imagem do vampiro causou um encanto aos Românticos franceses e, com certeza, essa metáfora feita por Baudelaire é uma reverberação desse encantamento medonho e lúbrico - e que é tão comum em todas as histórias de vampiros. Apesar da clara imagem dúbia em "perder-se-iam por mim os anjos impotentes", pois  tudo referia-se à atividade sexual, o poema nada mais explora do que o ser diante da exaustão do amor e do próprio ser - dubiamente.

Baudelaire nunca fora um santo, ao contrário, sempre perambulou entre a ironia e a serenidade louca. Mas quando Rimbaud aportou em Paris, na esperança de atingir a fama por meio da poesia, e o consequente perdão materno por ter fugido de casa, qualquer perspectiva de poesia ultrajante, como se dizia, mudou. Se Rimbaud se apresentou com o seu Barco Ébrio, um poema magnífico, solene e com grandes tendências parnasianas, logo se demonstrou um poeta satírico, apesar de melancólico e sem rumo. Em muitos casos, não há retrato mais fiel da Paris ensanguentada por Napoleão III, já doente, do que os versos do jovem poeta que parou de escrever para não se lembrar dos tormentos vividos em sua época de escritor.
Vejamos um dos casos jocosos da poesia rimbaudiana:

ORAÇÃO DA TARDE - Trad: Ivo Barroso

Vivo sentado como um anjo no barbeiro,
Empunhando um caneco ornado a caneluras;
Hipogástrio e pescoço arcados, um grosseiro
Cachimbo o espaço a inflar de tênues urdiduras.

Qual e um velho pombal o cálido esterqueiro,
Mil sonhos dentro de mim são brandas queimaduras.
E o triste coração às vezes é um sobreiro
Sangrando de ouro escuro e jovem nas nervuras.

Afogo com cuidado os sonhos, e depois
De ter bebido uns trinta ou bem quarenta chopes,
Oculto, satisfaço o meu aperto amargo:

Doce como o Senhor do cedro e dos hissopes,
Eu mijo para os céus cinzentos, alto e largo,
Com a plena aprovação dos curvos girassóis.

Ou podemos citar um outro caso, no qual a tendência anti-monarquista de Rimbaud, explorada por meio de uma poesia erótico-sarcástica, torna-se mais evidente:

LAMENTO DO VELHO MONARQUISTA - Trad: Ivo Barroso

Ao Sr. Henri Perrin, Jornalista Republicano

......................................... Haveis mentido!
Pelo meu fêmur, sim haveis mentido, ó besta
Apóstolo! Quereis fazer-nos sem sentido,
Arruinados? Pelar a nossa calva testa?
Mas eu, eu tenho dois gravados e torcidos!

No colégio sois quem suando o dia inteiro
Vê a ganha a escorrer pelo pescoço nédio;
Sois do dentista a máscara; no picadeiro
O cavalo que baba no bornal de tédio,
E me quereis levar quarent'anos de assédio!

Meu fêmur, ei-lo aqui! Eis o meu fêmur duro!
É bem este que após quarent'anos, tratantes,
Nesta velha cadeira de carvalho escuro,
Reteve da madeira a marca edificante.
E quando vir agora o teu órgão impuro
Nas mãos daqueles teus, palhaços, assinantes,
Vou retorcer esse órgão mole, sem tutanos,
..............................................................
E farei retocar, para os dias futuros,
O fêmur trabalhado ao fim de quarent'anos.

Segundo Ivo Barroso, "nestes versos, dirigidos a Henri Perrin, redator-chefe do Nord-Est, jornal republicano fundado em 1871 em Charleville, R. "assume" o papel de um monarquista que protesta contra a publicação. A palavra fêmur, aqui enfaticamente usada, corresponde a pênis e há um jogo com a polissemia de órgão (jornal/genital) (...)".

 (Na foto: Arthur Rimbaud)

O movimento Simbolista foi um deságue do Romantismo, numa junção com a estética-plástica parnasiana, sendo, em praticamente todos os lugares por onde passou, o movimento precursor do Modernismo. Ao proibirem as seis poesias de Baudelaire, multarem-no, e tacharem o estilo como "Decadente" (que nasceu já morto) ou Nefelibata (que anda nas nuvens), em oposição aos estilos que beijavam as involuções do Positivismo, criaram o clima propício para os vários estilos de poesia que se desenvolveram no Simbolismo, entre os quais estão, segundo Edmund Wilson, a sério-estética (Baudelaire, Verlaine, Mallarmé, etc) e a coloquial-irônica (Tristan Corbierè e Jules Laforgue). Camilo Pessanha, autor de Clepsidra, foi um dos poucos que conseguiram juntar as duas estéticas simbolistas numa só obra.
Rimbaud está classificado na sério-estética, mesmo porque desta seção pode-se abrir dois ramos: uma de inspiração mallarmaica, cujo alicerce é construtivista e hermético; e outro de inspiração verlaineana, cuja tendência neo-romântica é evidente. Baudelaire está presente no ramo sério-estético de maneira distinta, mas é o vulto maior dos artistas do auge do Simbolismo. 
Mas, afinal, Rimbaud seria classificado como? Pela grande presença de sua biografia na obra, a resposta mais fácil seria o segundo ramo da família sério-estética do Simbolismo, mas como as vastas informações de sua vida não esclarecem a totalidade de sua mensagem poética, deparamo-nos com o hermetismo de influência mallarmaica, portanto, com a obscuridade sugestiva; consequentemente, Rimbaud fora das duas linhas da sério-estético.

Para fins de esclarecimento, em 1949, a Corte de Cassação da França decidiu retirar as punições impostas a Baudelaire, numa época em que as suas obras já estavam em domínio público e em que já se eram conhecidos os  seis cantos nomeados como "Poemas Condenados". Em mais um caso, a arte pervence a efemeridade das perspectivas falazes de uma sociedade cega.

Abraços,
Cardoso Tardelli

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