quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Raul de Leoni, o Poeta Pagão

Caros leitores do Sacrário das Plangências, eis um texto do jornalista e crítico Franklin de Oliveira (1916-2000), célebre crítico do Movimento Modernista Brasileiro (autor do ensaio A Semana da Arte Moderna na Contramão da História), acerca do poeta Raul de Leoni (1895-1926), autor do livro Luz Mediterrânea, lançado exatamente em 1922, sobre o qual brilha um reconhecimento do estro, mas não uma devida leitura do público, que prefere ler os Modernos da época. Raul de Leoni, lembrando, foi um poeta que reuniu, com um engenho impressionante, os méritos estéticos dos parnasianos (apesar de ser, de quando em quando, um poeta sem métrica, mas com uma musicalidade e com um dom do discurso impressionantes) e o misticismo altivo do Simbolismo. O texto a seguir encontra-se na edição da Topbooks da Luz Mediterrânea, lançada em 2000.

O POETA PAGÃO

Franklin de Oliveira

( Na foto: Raul de Leoni)
"Com Joaquim Cardozo e Dante Milano, poetas do pensamento emocionado, Raul de Leoni forma o trio, em língua portuguesa, dos líricos nos quais a sensibilidade e a inteligência se acasalam numa harmonia indissolúvel. De formação rigorosamente clássica, da qual a clareza do seu verso é alto testemunho, Raul de Leoni não caiu nas armadilhas do tradicionalismo. Quem o salvou das formas estáticas?

Salvou-o o frêmito da herança simbolista. A esse clássico o simbolismo concedeu o friso da modernidade. Esse poeta das ideologias, como o classificou Rodrigo Melo Franco de Andrade no belo prefácio que escreveu para a edição de Luz Mediterrânea feita pelo Anuário do Brasil, em 1928.

Poeta das ideologias, sim, mas convém salientar que ideologias, para Raul de Leoni, não eram abstrações. Elas tinham a sua carnalidade, quer dizer: estavam atadas ao concreto. Eram seres - eram carne e espírito, - traziam a palpitação do sensualismo e do sonho. Celebrando Florença, ele o fazia como o poeta canta a mulher amada. O amor o prendia à vida. Esse poeta, para o qual as ideias eram encarnações ontológicas, não aboliu a mulher do seu cântico. Na única composição em que a mulher aparece como uma concha em que ressoam todos os motivos helenizantes da poesia de Raul de Leoni. É recordar:


Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras.
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila.

Às belezas heroicas te comparas
E, em mim, a luz olímpica cintila.
Gritam, em nós, todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranquila.

É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço ao longe o oráculo de Elêusis),

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo
E, do teu ventre, nasceriam deuses...

Raul de Leoni, poeta pagão. Esta, sim, é a definição que lhe cabe. E esse paganismo é a fonte de sua modernidade. Num mundo como o nosso, corroído pelas éticas que negam a felicidade, a poesia que restaura a glória de amar - amar belamente, amar guiado pela beleza - torna a Terra a residência da alegria. E esta era a poesia de Raul de Leoni.

O leitor brasileiro dos nossos dias, principalmente os jovens, não têm sequer notícia da poesia de Raul de Leoni. Esta reedição de Luz Mediterrânea oferece sobretudo à juventude uma visão do mundo que a História não lhes pode dar. Sendo a apologia dos sentidos, Luz Mediterrânea é a poética da glorificação da vida.

***

Protegido por Nilo Peçanha, que o fez deputado estadual pelo Rio de Janeiro e lhe abriu as portas da diplomacia, Raul de Leoni não se interessou pelas duas carreiras. Preferiu viver isolado em Itaipava - espécie de exílio que ele só suspendeu para a visitação dos deuses gregos e a presença permanente de Florença. Considerava-se irmão de Epicuro e de Renan, mas creio que a aproximação maior era com o materialista grego. Poeta do pensamento que se volatiliza, o seu verso tinha a palpitação das asas feridas. E nele se oculta a um subterrâneo panteísmo: seres e coisas, estas, "seres incompletos", teciam a malha do Universo composto de realidades itinerantes:

E a vida passa... efêmera e vazia:
Um adiamento eterno do que se espera,
Numa eterna esperança que se adia...

Na sua poemática paira a sombra de uma saudade que é quase uma forma de esperança:

No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube porque foi... um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe porque era... Não sabia...

Desde então, transformou-se, de repente,
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para frente...

Nunca mais nos falamos... vai distante...
Mas quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,

E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer coisa,
Mas que é tarde demais para dizê-la...


Não foi só a formação clássica que levou Raul de Leoni a não participar da "patacoada paulista", como à Semana de 22 chamava com justa ironia Dante Milano. Contra o que se apregoa, aquele não foi um movimento de renovação literária, mas um convescote, financiado pela plutocracia do café e apoiado politicamente pelo que havia de mais reacionário no Brasil daquele tempo - o PR, jornal oficial desse partido, foi o jornal dos modernistas.

A "insurreição literária" dois dois Andrades - Mário e Oswald - foi antes de tudo um movimento contra Coelho Neto. Tanto assim, que tudo que tenha sido validamente escrito naquele tempo sobre o Brasil - Os Sertões, de Euclides da Cunha, a radiografia da sociedade do Segundo Reinado feita pela ficção de Machado de Assis, a obra de Hugo de Carvalho Ramos, de Lima Barreto e de Monteiro Lobato - foi solenemente ignorado pelos alegres rapazes de 22. Muitos anos depois, o papa do modernismo, Oswald de Andrade confessou: "Sou um palhaço da burguesia". E acrescentou que para ele o oposto do burguês não era o operário, mas o boêmio. Esta confissão é o seu melhor retrato intelectual.

Lima Barreto, no Rio, e Afonso Schmidt, em São Paulo, foram os únicos autores que trataram do povo como tema literário - por isso mesmo ficaram fora do pagode modernista. Quando se pensa que Marinetti, o caixeiro viajante de Mussolini, foi o reitor da Semana, não se precisa dizer mais nada sobre essa jornada de otários.

Tendo preservado a sua dignidade literária, passando ao largo da mistificação de 22, Raul de Leoni realizou uma obra integrada na literatura viva e não na história literária, cemitério de tantos autores insignificantes."

***

Apesar de discordar do tom iracundo de Oliveira acerca do Movimento Modernista, não posso negar que o foco dado aos autores da Semana é injusto - artisticamente, principalmente - e beira uma ode à suntuosidade de uma data, não à arte, em si. É inegável a importância histórica do movimento dos Andrades, mas questionável é a sua característica de, como pontuou Mário Chamie "ser uma vanguarda anti-vanguarda", pois juntou autores de várias vertentes para separá-los depois, esparsos em um nada chamado "liberdade" (que, na verdade, sabemos que é falaciosa, já que sempre haverá um gosto e um momento imperativo).
Não somente no período de 1922 até atualmente, mas também um pouco antes da Semana, tivemos tantos bons escritores e poetas, mas todos perdidos em um limbo, já que acima há, na tentativa de temporalizar algo que não deve ser temporal, a eterna baliza, certamente um espectro, do modernismo indicando o que fazer ou não em nossa literatura.

Abraços,
Cardoso Tardelli


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