quarta-feira, 11 de abril de 2012

O Simbolismo Social

Caros leitores do Sacrário das Plangências, eis uma postagem que aparece aos olhos, aparentemente, com uma certa contradição natural. Muito se diz sobre o Simbolismo e sua ausência de posição nas ordens políticas dos países, "rebaixando-o" a um estilo de literatura descrito como egotista, ou seja, exacerbadamente focado em si mesmo. Os textos que mostrarei aqui mostrarão o contrário. Não esperem, porém, encontrarem ausência de sugestividade mórbida ou celestial, além da óbvia presença de um linguajar extremamente refinado e excêntrico, pois eles fizeram um papel essencial no movimento.
(Na pintura: Eugênio de Castro)

Tanto no Simbolismo Brasileiro quanto no Português houve a produção de poemas de cunho social, lembrando, inclusive, alguns do Romantismo, movimento que, fora os temas emocionais, tratava dos problemas da sociedade como um cotidiano insólito.
Vejamos o caso de Eugênio de Castro (1869-1944), poeta português e um dos maiores do Simbolismo lusitano. Note-se a ausência de rimas e a ausência de forma fixa, algo que já seria comum em alguns do segundo movimento Simbolista brasileiro, evidenciando o fato de que o Simbolismo foi o precursor do Modernismo, e não um movimento conjunto ou com participações conjuntas, como supõem alguns que botam poetas Decadentistas no posto de Modernistas.

A ALEIJADINHA

A Baltasar Freire Cabral

À beira duma estrada,
Está uma aleijadinha
Pedindo esmola.

Na estrada passam ranchos,
Ranchos alegres para a romaria...
Chove ouro.
Ao som dos alaúdes, as virgens cantam...

Nos pomares,
As laranjeiras estão de branco, como as noivas...
E as virgens, cantando ao som dos alaúdes,
Descem aos pomares
E põem flores de laranjeira nos cabelos...
A aleijadinha pede esmola,
A aleijadinha é triste, os ranchos são alegres:
Dir-se-ia uma dança em volta duma tumba.

A aleijadinha pede esmola:
A sua voz é cor de cinza,
E suas mãos implorantes, cor de barro cozido,
Parecem flores pisadas...
A aleijadinha pede esmola
Mas ninguém a ouve.

E todos fogem dela,
E, ao vê-la, todos ficam desgostosos,
Como noivos que, à ida para a igreja,
Encontrassem um enterro.

É noite...
A estrada é deserta...
Afastaram-se os ranchos...
Fanou-se a angústia dos alaúdes...

Chuvisca. Baça nuvem
Veste a aleijada de diamantes...
Suas mãos, cor de barro cozido,
Suas mãos, onde não cantou o riso duma esmola,
Fecham-se como flores pisadas,
Morrendo de sede na poeira.

A aleijadinha está com fome
E não tem que comer...
A baça nuvem foi-se...
E, toda vestida de diamantes,
A aleijadinha parece uma princesa...

A aleijadinha está com fome
E não tem que comer...
E para esquecer a fome
Põe-se a contar as estrelas...

(Em Silva, 1894)


Apesar de não conter um brado de revolta tão claro quanto os encontrados em outros que em breve veremos, Eugênio de Castro, neste caso, destaca-se pela sugestividade pela qual baseia-se sua imagem-principal (a aleijada) e pela alegoria de imagens-secundárias, que, ou desdenham da aleijada ou, por intermédio de um sonho embebido de sofridão, fazem parte de um efêmero alento à penosa alma da aleijada.

(Na foto: Cruz e Sousa)


Cruz e Sousa (1861-1898), o maior poeta Simbolista do Brasil, poderia ter como exemplo várias de suas obras. Apesar de ter, após a sua decisão de tomar o signo do Simbolismo para si, recebido acusações de ter ficado alheio a assuntos de "interesses-sociais", nunca deixou de tratá-los em seu estro. Tendo participado do movimento abolicionista, "tendo uma tendência a favor do Socialismo", segundo Andrade Muricy, seria, no mínimo, difícil o alheamento desses temas à sua obra. Além do classicamente referenciado "Crianças Negras", há o "Escravocratas", que não raramente aparece em estudos com o feitio da análise social da poesia do Dante Negro:

ESCRAVOCRATAS

Oh! Trânsfugas do bem que sob o manto régio
Manhosos, agachados — bem como um crocodilo,
Viveis sensualmente à luz dum privilégio
Na pose bestial dum cágado tranqüilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
Ardentes do olhar — formando uma vergasta
Dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
E vibro-vos à espinha — enquanto o grande basta

O basta gigantesco, imenso, extraordinário —
Da branca consciência — o rútilo sacrário
No tímpano do ouvido — audaz me não soar.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
Vermelho, colossal, d'estrépito, gongórico,
Castrar-vos como um touro — ouvindo-vos urrar!


Com relação a Cruz e Sousa, há de se sugerir a leitura de "Litania dos Pobres", que é encontrada em Faróis. Na "Litania", Cruz e Sousa consegue fazer um uso das imagens que evocam extrema pobreza com a riqueza vocabular que é comum ao Simbolismo, como nos dísticos:

LITANIA DOS POBRES

Os miseráveis, os rotos
São as flores dos esgotos.

São espectros implacáveis
Os rotos, os miseráveis.

São prantos negros de furnas
Caladas, mudas, soturnas.

São os grandes visionários
Dos abismos tumultuários.

As sombras das sombras mortas,
Cegos, a tatear as portas.

(...)

No Simbolismo Brasileiro, dois outros casos bem interessantes ocorreram (sem contar o Pauvre Lyre, de Alphonsus de Guimaraens, livro escrito em Francês e que se voltava às tensões da Primeira Grande Guerra). Fora os pormenores encontrados em pequenas estrofes, Marcelo Gama (1878-1915) e Silveira Neto (1872-1942) foram, além de grandes Simbolistas - principalmente o último -, grandes poetas sociais.

(Na foto: Marcelo Gama)

Marcelo Gama aproximava-se de uma poesia igualitária, socialista, cheia de críticas à sociedade de injustiças morais e físicas. Este poeta, que morreu no Rio de Janeiro ao ser arremessado de um bonde, quando ia ao caminho de sua casa, era extremamente psicológico e lançava mão de "achados verbais", segundo a análise de Andrade Muricy.

Vejamos o poema "Feia":


FEIA

Feia!... Como isso dói na tua alminha débil!
É nobre, a coitadinha, e muito a contraria
ser forçada numa tal moradia...
Eis aí porque a vejo amargurada e flébil.

E é por seres assim que eu te quero assim tanto,
com este amor tão limpo e tão sem egoísmo,
pois logo a sujaria o meu sensualismo,
se animasse essa carne algum sopro de encanto.

Toda vez que me vem de tu'alma perfeita
esse ar de doçura e pesar sossegado,
evocas-me o sabor que já tenho encontrado
em certos frutos sãos, mas de casca suspeita.

Água fresca bebida à beira de uma fonte,
em mau copo de folha, enferrujado e gasto...
Como deve bater, penosamente casto,
sob o teu peito murcho, o coração insonte!

Borboleta que sai de um casulo rugoso,
teu sorriso não traz convites para o beijo:
antes pede perdão... manifesta o desejo
de que não se repare em teu corpo anguloso.

Sei que um dia choraste, assistindo a uma boda,
porque viste alguém rir do teu porte mesquinho.
Já chegaste a dizer, encontrando um ceguinho:
- Que bom se fosse cega a humanidade toda!

Entristeceste ao ver, numa revista de arte,
um "tipo de beleza"... E terias a palma
se fosse dado a alguém fotografar tu'alma:
- não havia mulher tão linda em toda parte.

Dói-te se ouves falar, quando estás numa roda,
na formosura desta ou daquela mulher.
Vês em cada semblante um motejo qualquer,
e descreste, por fim, dos recursos da moda.

Imagino que horror deves ter aos espelhos!
E a crueldade da água em que lavas o rosto
há de forçosamente encher-te de desgosto,
repetindo que és feia e dando-te conselhos:

- Que não tenhas vaidade e não sejas faceira...
Parece-me que a ti um tal conselho é inútil,
pois tu'alma sadia, abençoada e dúctil,
é uma flor que nasceu dentro de uma caveira.

(em Via-Sacra, 1944) 


Este poeta, mais um do Simbolismo que é menos conhecido que deveria, teve como ápice de sua poesia social o longo "Noite de Insônia", poema no qual não mediu a ambientação brasileira para a crítica desejada.


(Na foto: Silveira Neto)

Silveira Neto, autor do célebre Luar de Hinverno (1900), nunca ocultou seu feitio para além do interesse emocional e metafísico do homem, para os quais normalmente os Simbolistas se voltavam. Apesar da sua poesia ser extremamente pessimista, transcendental, fúnebre, obras como a "Ode ao Alicerce" são exemplos claros de uma revolta social, política e também, se formos pegar de exemplo a décima primeira estrofe, um incômodo com a preferência pelo cientificismo em detrimento da arte, feita tanto pelos governantes quanto pelo povo (deságue que realmente ocorreu, vide nossa época).

ODE AO ALICERCE

De pedras brutas, pedras sobrepostas,
Que a rígida argamassa em bloco firma,
Diz o Alicerce: aqui, nestas encostas,
Quem a muralha que eu sustento pode
Sacudir-ma?

Num baque surdo, para aquele rumo
Foram as pedras num montão jogadas;
Depois, a trolha, o camartelo, o prumo,
E o plano feito: em linha foram todas
Colocadas.

Talhando o solo a pique, da comprida
Vala terrosa lento ele se erguera,
Erato e largo, devassando a vida,
Com a solidez de um contraforte de aço
Se fizera.

Então, sobre o Alicerce, pedra a pedra,
Erguem-se paredões e a de granito
Bela fachada, que a alma desempedra
De uma arte antiga, relembrando assombros
Do alto Egito.

Veem-se portais que ao passo humano tentam
Para cultos de Apolo ou das Fortunas;
Ou plintos onde hieráticas assentam
Desse mármore branco do Pentélico
As colunas.

Fustes coríntios; capitel de acanto,
Que a lenda evoca de uma noiva morta;
Cariátides de olhar frio, do espanto,
Que à vencida de Cária, ou Salamina
Desconforta.

E a soberba muralha que recorda,
Cruel, do Coliseu a arena imensa,
Ou Brunellesco que a amplidão acorda
Quando a assombrosa cúpula levanta
De Florença.

Suntuosa e vasta é pronta a maravilha:
Palácio ou templo, escola ou alcaçares;
De amplos salões em que a Ilusão rebrilha
Do Gozo farto; mas... e se for tudo
Pelos ares?...

Pompas de ouro e veludo, lá por dentro,
geram orgias; e, paramentado,
De Judas e Iago é o orientalesco centro.
E ninguém mais se lembra do Alicerce,
Enterrado.

Vultos senhoriais de governantes
Calcam os pavilhões. Crésus bojudo
Loas burila aos tetos fulgurantes:
E a Arte se obumbra e a Ciência tudo aplaude,
Tudo! Tudo!

Mundo que é a febre do viver humano,
Encastelado nas muralhas; e estas
O poderio, rígido e tirano,
À luz ostentam entre varandins
E giestas.

E o Construtor o gênio não disperse
Em calcular o peso do mundo,
Que subterrâneo e humílimo o Alicerce,
Ninguém o vê, mais ei-lo ali supremo
E profundo.

De que ele exista (é bem humana a incúria)
Dos paredões abaixo, quem se lembra?
Ah! mais um dia fende-o, horror, a fúria
Do terramoto; e à convulsão que trágica
O desmembra.

Ele estremece. A grita e a insânia dá-lhas
O pânico; e, num rápido minuto,
Ruem tombando a cúpula e muralhas,
E mármores e bronzes, num reboo
Longo e bruto.


E ao fundo o novo Atlante vê o entulho
Do orbe que há pouco lhe pesava aos ombros;
Um século de lutas e de orgulho
Que desmoronam; e ele inda é alicerce,
Nos escombros.


Povo, assim és; o plinto da estrutura
Na Mole social; e era oculto
Sob a ruma de andrajos e amargura.
Quem do Kremlin, ou de Versailles, vira
O teu vulto?


Mas se ao peso do guantes ou da fome
A juba enristas, o rugido atroa;
E nada mais a cólera sem nome
Detém-te, e Alhambras ou Bastilhas, tudo
Se esboroa.


E não sucumbes, não; pária indomável.
E te hás de alevantar um dia invicto,
Povo! como as montanhas, admirável,
Bloco integral com o vértice em demanda
Do Infinito.


Janeiro - 1914



Eu poderia citar mais alguns casos, mas creio que estes mostrados já fazem jus à qualidade desta parte da poética Simbolista. O que devemos lembrar é que a falácia da obrigação do engajamento é muito perigosa, ainda mais num país em cuja história há a mácula de uma ditadura militar. Se a Arte fosse tão somente para cantar as dores do povo, causadas por uma falha de um sistema político ou econômico, não haveria o porquê de termos uma Arte como modo Estético do espelhamento da beleza exterior e do âmago do leitor, na catarse que transforma todo visualizador num personagem da obra. Assim como a obrigação de engajamento é falaciosa, o contrário também o é. O Artista, que há muito já deveria ter novamente o seu direito de cidade, é que, de acordo com os ocorridos de sua obra e de sua necessidade, deveria fazer o julgamento do engajamento ou não.

Abraços,
Cardoso Tardelli

2 comentários:

  1. Ah muito bem citado. Compreendo que a arte, de toda forma, além de por em foco ideias e ideais de um autor, sempre foi a tela mor para as mazelas e felicidades humanas, e ainda é.

    Seus artigos são muito bons,continua com a alta qualidade!

    ResponderExcluir
  2. Davi, muito obrigado pelos seus sempre bem ricos comentários. É sempre bom saber que há pessoas que escrevem como você o faz (dei uma passada em seu blog e li alguns muito bons)e que gosta dessas análises que cá faço.

    Abraços!

    ResponderExcluir