quarta-feira, 4 de maio de 2011

A Autoridade Autoral

Caros leitores do Sacrário das Plangências, caso achem que o blogueiro cometeu um erro ao colocar o título do Post de "A Autoridade Autoral", faço o meu ponto: tratarei de Poesia, não de dinheiro referente aos Direitos sob as vendas dos livros que contenham poemas de um autor, além de outros processos que podem ser relativos ao Direito Autoral.

Poderia definir a Autoridade Autoral como o que o autor, pondo em prática o seu Ofício, deixa em seu Autógrafo (Manuscrito que contém o autógrafo do autor), independentemente de aparentes erros estruturais ou
ortográficos para futuras gerações, o Conteúdo de sua Arte com o total saber de seus caminhos. A Autoridade é mental-própria e não flui para modificações posteriores, com a exceção aos acordos ortográficos - ainda sim, sabendo colocar o Autor no referente estilo em que se encaixava, na certeza de deixar o texto em sua forma mais límpida e leal ao Original.

Não estou tratando, contudo, das vulgares Licenças Poéticas, pois hoje elas são usadas para o mal da Arte Poética (ou, numa ampliação rompida de seus véus, das letras musicais, que muito fazem de medonho em seus conteúdos); a Autoridade Autoral é a Autoridade total do Autor sob o conteúdo do Original, esteja ele vivo ou morto.

Diferenciações feitas, parto para alguns exemplos que causaram-me a ideia desta postagem. A minha edição de Últimos Sonetos, de Cruz e Sousa (Editora UFSC.
Florianópolis, 1997), tem passagens que demarcam as alterações dos textos originais feitas pelos editores mesmo com os Autógrafos do livro estando em perfeito estado de conservação. O que mais chama a atenção é o fato de que Nestor Victor, o melhor amigo do poeta e para quem Dante Negro destinou os três sonetos derradeiros do livro, editor de duas publicações de Últimos Sonetos (1905 e 1923) fez modificações estranhas aos Originais Cruzianos, sendo seguido pelas edições de Andrade Muricy, um grande amigo de Nestor Victor (edições de 1945 e 1961).

(Na foto - Nestor Victor)



Visualizando o clássico soneto "Supremo Verbo", vê-se na edição que tenho em mãos (que contém, de alguns poemas, os fac-similares de seus Originais) que as modificações apontadas por Adriano da Gama Kury, autor das correções feitas nas edições antigas com base nos Autógrafos de Cruz e Sousa doados para a Casa Rui Barbosa, partem desde um desdém à Autoridade Autoral e chegam ao erro de leitura, o que nos surpreende pelo fato de que alguns já eram conhecidos quando Cruz e Sousa era vivo.


Na primeira estrofe, por exemplo:


SUPREMO VERBO

- Vai, Peregrino do caminho santo,
Faz da tu'alma lâmpada do cego,
Iluminando, pego sobre pego,
As invisíveis amplidões do pranto

O travessão, que essencial é ao entendimento da poesia, pois é o início de certo Sermão Supremo da Natureza para o Poeta, foi retirado das edições feitas sob os cuidados de Andrade Muricy. Na segunda estrofe:

Ei-lo, do Amor o cálix sacrossanto!
Bebe-o, o feliz, nas tuas mão o entrego...
És o filho leal, que eu não renego,
Que defendo nas dobras do meu manto.

Quanto ao "Cálix", que está no original, foi usado um sinônimo que mudava a métrica - "Cálice" - na primeira edição organizada por Andrade Muricy. O "És" está no Original, mas foi suprimido pelo erro de leitura que me referi anteriormente. No Autógrafo de Cruz e Sousa é possível confundir-se por "Eis", como está marcado em todas as edições anteriores a que tenho em mãos, mas soaria estranho ao encaminhamento da poesia.
Em todo livro há uma série de estranhas modificações que se fosse eu colocá-las, ficaria a maior postagem do blog.

Devemos, porém, entender o que é uma modificação consciente e que é um erro tipográfico. Para tal, basta um pouco de discernimento e atenção. Mudarei de autor para discutir esse tipo de erro e mostrar o quão diferente é.

Casimiro de Abreu teve suas "Obras Completas" lançadas, pela primeira vez, em 1871, quase onze anos depois de sua precoce morte, editadas por Joaquim Noberto de Sousa e Silva, publicada pela editora Garnier, provavelmente para comemorar 10 anos do falecimento do poeta fluminense. A tentativa, porém, foi de uma frustração inefável, tanto que a Edição é quase extinta nos dias atuais (segundo Mário Alves de Oliveira, em sua vasta pesquisa só encontrou três edições de 1871) por motivos de destruição, inclusive do frustrado editor.

A recente edição da "Obra Completa" de Casimiro de Abreu, organizada pelo pesquisador referido, Mário Alves de Oliveira (G.Erakoff Casa Editorial, Rio de Janeiro, 2010) - obra de leitura obrigatória para os fãs da poesia Romântica -, além de nos trazer toda a obra de Casimiro, mostra os percalços pelos quais os versos de Abreu tiveram de passar - e a lendária primeira edição de suas "Obras Completas" está no altar altivo do desastre. Durante a análise, Mário Alves de Oliveira mostra-nos alguns dos estranhos erros tipográficos que se encontram no livro. Sabendo-se que a Obra foi editada em Paris, há a probabilidade de erros pela consequência do não conhecimento da Língua Portuguesa. Aqui vão alguns erros mostrados por Mário A. de Oliveira:

(Em negrito, o trecho correto)

"Pos esses campos que eu amo", em lugar de "Por esses campos que eu amo"

"A virgem na reda córando e sorrindo..." em lugar de "A virgem na rede corando e sorrindo".

"Sem envires meu lamento;" em lugar de "Sem ouvires meu lamento".

"Trlvez que eu durma solitário e mudo" em lugar de "Talvez que eu durma solitário e mudo"

"Dá, fosmosa", em lugar de "Dá, formosa,"

Enfim, Mário Alves de Oliveira nos dá vinte e um exemplos de erros que beiram o cômico e o estranho, sendo que, segundo ele, havia mais nessa edição. Erros que são, não obstante, facilmente diferenciáveis das violações das Autoridades Autorais. Não podemos esquecer de que as edições malfadadas têm como consequência uma reputação manchada do Poeta, principalmente se houver um grupo interessado em fazê-lo. No caso de Casimiro de Abreu, sabe-se que seu nome foi desdenhado pelos Parnasianos, cultuadores da forma e da pseudo-perfeição, porque sua poesia continha erros de português e métrica.

O grande ponto é que a violação da Autoridade Autoral também pode nodoar a Poética de um autor, mesmo porque não necessariamente a "correção do editor" satisfaz o desejo do autor em seu ofício de criação e, inclusive, pode mudar o sentido da obra. Sendo assim, a pureza dos originais tem de ser mantida para a quintessência do estilo do autor não ter fulgores, ou negrores, estranhos a ela.

Abraços, Cardoso Tardelli

2 comentários:

  1. A rigor, o que você denomina "autoridade autoral", é um dos direitos assegurado pelo chamado "direito autoral", na verdade, um "direito moral" sobre a obra. Noel Rosa é conhecido como um "vendedor" de sambas, pois sempre precisando de dinheiro, acabou "vendendo" algumas de suas obras.Hoje, isso seria inadmissível. O respeito a integridade e a autoria de uma obra artística é condição para uma sociedade, que preza a criação do espírito, promover, com ética, as expressões artísticas.

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  2. Não creio que nas edições de Nestor Victor e Andrade Muricy tenham fulgido uma falta de ética, mas creio que tenha faltado, como você disse, um "respeito à integridade e à autoria de uma obra artística". Andrade Muricy, em seu Panorama do Movimento Simbolista, "corrigia" os cento e poucos autores que lá estão registrados. Em um dos casos, no poema "O Coveiro", de Adolfo Wernek, no original há um "fiéis" numa das estrofes, que foi substituído por "féis" (de fel, tédio), talvez por ser mais condizente ao caso, mas à rima não faz muita diferença, mas faz total ao anelo original do autor.

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