quinta-feira, 4 de abril de 2013

Alceu Wamosy - Poeta do seu e de nosso tempo

Caros leitores do Sacrário das Plangências, transcrevo-lhes um texto de Cícero Galeno U. Lopes, presente no livro "Poesia Completa" de Alceu Wamosy (Alves Editores, IEL, EdiPUCRS, 1994), complementando o texto com os poemas completos (já que Galeno somente coloca trechos dos textos).

Alceu Wamosy, simbolista e gaúcho, considerado à sua época o "segundo Cruz e Sousa", é mais um dos casos do simbolismo brasileiro em que o esquecimento tomou lugar do mérito poético. Não que, de fato, Alceu fosse o segundo Cruz e Sousa, mas era um poeta com várias qualidades e singularidades, indo muito mais além de seu clássico Duas Almas, soneto com o qual, para a academia, "entrou para a eternidade de nossas letras".

WAMOSY: POETA DO SEU E DO NOSSO TEMPO

Por Cícero Galeno U. Lopes

"Este estudo procura rever a obra wamosyana a partir de conceitos críticos anteriormente publicados. Mais precisamente, parte da análise introdutória à segunda edição de Poesias (Porto Alegre, Globo, 1925). Trata-se, portanto, de exame feito à obra completa. Nesse estudo Mansueto Bernardi propõe pelo menos dois posicionamentos a partir dos quais se podem alicerçar estas reflexões: 1 - "O planeta que habitamos constitui para Alceu um simples miradouro ereto à contemplação dos mundos irreais"; 2 - o poeta aparece para Bernardi como "sem olhos para ver a realidade circundante".

Nas suas reflexões, o crítico percebe que o homem nunca será o mesmo: "Nós mudamos incessantemente" - escreve Bernardi. Inobstante, não se refere assim à construção poética de Wamosy. O homem não será sempre o mesmo significa não apenas um processo histórico-social, como claramente um processo histórico-pessoal.

(Na foto: Alceu Wamosy)

Bandeira, em Nova-Poética, concebeu a poesia fora do sonho, embora ela seja, para ele, "também orvalho". O comprometimento coletivista, de base social, que reafirma elementos de identidade coletiva, contrapõe-se a essa poesia que Bernardi viu em Wamosy. A situação histórico-literária (da vigência do simbolismo) reafirmou essa condição lírico-onírica à obra de Wamosy. O individualismo sentimental e o intimismo hermético confrontam-se com a situação presente de poetas que vasculham o homem em tempo de dificuldades, que não enxerga apenas o exílio íntimo. "O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes" - escreveu Drummond em Mãos dadas.

A outra dificuldade, que normalmente se enfrenta para o estudo do poeta uruguaianense, é a carência bibliográfica, o que, aliás, esta edição vem sanar. Em geral, as antologias, que contemplam a obra wamosyana estampam Duas Almas e a partir desse poema elaboram-se as análises e as conclusões. Os estudos sobre Wamosy, em geral, repisam as marcas simbolistas na obra dele e nelas se concentram. Acrescente-se o contumaz desvio dos estudos em direção aos aspectos históricos do cidadão, esquecendo ou transferindo a segundo plato o eu poético. Na verdade, de acordo com o que indicou este estudo, Wamosy foi um poeta do seu tempo (é verdade) e também do nosso, como em continuação se procurará demonstrar.

No livro de estreia, Flâmulas (1913), já se percebem as marcas da reflexão contingencial, do racionalismo (de origem neo-parnasiana), como se lê, por exemplo, em Monturo Humano, em que se estabelecem as bipolaridades e consequentes antíteses características de toda a obra poética de Wamosy:

MONTURO HUMANO

É na obscuridade das choupanas,
Nos lúgubres albergues da pobreza,
Que andam vibrando na maior rudeza
Todas as grandes sensações humanas!

Aqui, é a flor serena da beleza,
Colhida à noite pelas mãos profanas!
Ali, palpitam, cantam, soberanas
Epopeias de vício e de pureza!

Há criancinhas nuas - açucenas
Desabrochando em lodo! Há virgindades
Cantando coisas torpes e obscenas!

E Deus faz desses antros obscuros,
Com toda a infâmia e a mágoa das cidades,
O mais humano e negro dos monturos...


O substrato dos conceitos expressos revela as ressacas românticas e o contra-fluxo da ideologia parnasiana, no vocabulário e na elaboração. Essa peculiaridade é comum à literatura gaúcha da época (pelo menos a produzida no interior do Estado).

Em A Revolta do Corvo, lê-se um poema nitidamente anti-simbolista, apesar do uso de símbolos:

A REVOLTA DO CORVO

Negro, petrificado e frio como um mito
De Buda, a passear o olhar de lado a lado,
Ele deixou-se ali ficar, sob o infinito
Peso de sua tortura - estranho torturado...

E lançando, talvez, à bruma do passado,
O seu profundo olhar sereno de proscrito
Atirou para o alto e negro céu calado
A blasfêmia audaciosa e rubra do seu grito!

E o céu que não escuta e que é marmóreo e torvo,
Riu, talvez, para si, da pequenez do corvo
E afivelou de novo a máscara de aço.

E o corvo, alçando o voo, embriagado e tonto,
Subiu... cortou a névoa... a bruma... e como um ponto
Negro, sumiu-se além, na escuridão do espaço...


Desde o título do soneto anunciam-se duas posições antagônicas ao simbolismo. Revolta contrapõe-se à posição tradicional (considere-se a circunstância histórico-social da época) do conformismo cristão e do fatalismo, que foi presença no período simbolista, como se pode comprovar lendo, entre tantos, Cárcere das Almas, de Cruz e Sousa, e A Catedral, de Alphonsus de Guimaraens. O fatalismo também ronda a obra (pós-simbolista) de Augusto dos Anjos.

Se a revolta não é uma atitude simbolista, corvo - pela simbologia que possa expressar - tem ainda menos de simbolismo, enquanto estética literária. Esse corvo "subiu... cortou a névoa... a bruma" - i.e, contrapõe-se e fere os símbolos mais marcantes do simbolismo (as transcendências, as brancuras, a imaterialidade/espiritualidade, o assentamento poético semântico sobre o significante). O corvo de Wamosy, ainda, "alçou voo", "sumiu-se além", i.e, mantém a trajetória para o alto. No simbolismo o alto é o ideal, a aspiração desvinculada da contingência; é o espiritual, representado pelas palavras simbólicas marcantes da estética.

No ano seguinte (1914) saía Na Terra Virgem, e novamente o poeta, tantas vezes considerado simplesmente simbolista, voltou aos poemas bipolares e antitéticos. (...) Pode-se constatar isso, por exemplo, em Desiludido:

DESILUDIDO

Por que te hás de aquecer ao sol dessa esperança
Nova que despontou na tua alma ingênua e crente?
Se ela é como sorriso em lábio de criança,
Que se há de transformar em pranto, de repente...

A ventura completa é céu que não se alcança,
Mas que a gente vislumbra, além, perpetuamente:
Esse céu mentiroso é um céu que foge e avança
Se é maior ou menor a aspiração da gente.

Sê simples e sê bom, mas não julgues que um dia
Hás de o teu coração, repleto de alegria,
Para sempre fechar, como quem fecha um cofre!

Crê que a desilusão é o sonho pelo avesso,
E que só se é feliz dando-se o mesmo apreço
Ao gozo que se goza e à mágoa que se sofre!

Noutra forma, a ocorrência se dá em Idealizando a Morte:

IDEALIZANDO A MORTE

Morrer por uma tarde assim como esta tarde:
Fim de dia outonal, tristonho e doloroso,
Quando o lago adormece, e o vento está repouso,
E a lâmpada do sol no altar do céu não arde.

Morrer ouvindo a voz da minha mãe e a tua,
Rezando a mesma prece, ao pé do mesmo santo,
Vós ambas tendo o olhar estrelado de pranto,
E no rosto, e nas mãos, palidezes de lua.

Morrer com a placidez de uma flor que se corte,
Com a mansidão de um sol que desce no horizonte,
Sentindo a unção do vosso beijo ungir-me a fronte,
- Beijo de noiva e mãe, irmanados na morte.

E morrer... E levar com a vida que se trunca
Tudo que de doçura e amargor teve a vida:
- O sonho enfermo, a glória obscura, a fé perdida,
E o segredo de amor que eu não te disse nunca!

Essa bipolaridade (a vida e a morte têm o mesmo valor) é frequente no poeta uruguaianense. Ela deriva, por um lado, do confronto crença-descrença, alma-corpo. Por outro, ela se origina da própria insurgência de novos valores coletivos.

O poeta atinge a culminância (no conjunto de poemas de base simbolista) em Coroa de Sonho, que inclui Duas Almas. Na Oferta (na abertura do livro) que faz a Maria Bellaguarda (com quem casaria in extremis), na segunda estrofe, diz o poeta:

Possuem do teu gesto encantador o ritmo,
e nos símbolos seus anda um mesmo mistério
que te aparta do mundo e apenas revela
Para o amor do meu culto-esplendor do meu sonho.

No terceto final, lê-se:

Ó toda pulcra Urna divina, urna de carne
onde a beleza dorme, harmoniosa e radiante,
recebe este Missal da minha adoração.

O que aí se lê é a elevação espiritual da visão feminina. Ouvem-se também ecos de Antífona. As bipolaridades, porém, não estão afastadas. Elas ocorrem entre o espiritual e o corpóreo, marca decisiva da obra de Wamosy, denunciadoras do dilaceramento (do eu) poético entre mundos decadentes, em extinção, e a presença material, corpórea, da vida. Os pólos se estabelecem também entre o passageiro e o perene, entre o concreto-sensível e o etéreo.

O fecho (terceto final) demonstra no primeiro verso a significação do mistério e da simbologia, através da maiúscula repetida, como se vê igualmente no primeiro verso de Antífona: 'Ó formas claras, brancas, cristalinas, Formas claras.' Missal, no derradeiro verso, nos remete a Cruz e Sousa. Inter-textualiza com o poeta catarinense - com a obra dele e com o tema do misticismo. Intra-textualmente, entrelaça relações polarizadas entre divino/sonho e urna-carne. (...) Aí, as bipolaridades e as consequentes antíteses predominam, desde a epígrafe "O próprio sonho não é senão uma sombra..." (de Hamlet).

(...)

No término dessas reflexões, examine-se Duas Almas. Nesse poema, muito além da antítese, está a bipolaridade, expressão subliminar do dilaceramento interepocal e interpessoal (representado pelo afastamento tu-eu) - constituinte dos conflitos poético-existenciais. As bipolaridades instauram-se desde a estrofe introdutória:

Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
Entra, e sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
Vives sozinhas sempre, e nunca foste amada.

Na segunda estrofe, a sugestividade fônica cresce significativamente. Aparecem antíteses de sensibilidade física (térmica e ótica):

A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
E a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entre, a menos, até que as curvas do caminho
Se banhem no esplendor nascente da alvorada.

Na terceira estrofe, o poeta consegue o clímax do trabalho fônico-expressivo:

E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
Essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
Podes partir de novo, ó nômade formosa!

A abertura - e amanhã - põe a sugestão da claridade, da luminescência, do renascimento. Depois, ainda no primeiro verso - quando a luz do sol dourar radiosa - e essa estrada - (já no segundo verso) - expressão a continuidade crescente da claridade emergente. (...)

Resta refletir, ainda neste terceto, sobre um dos excelentes versos do poeta (aqui parcialmente considerado):... sem fim, deserta, imensa e nua. Trata-se de dois pleonasmos com elevada expressividade: semanticamente sem fim equivale a imensa; deserta a nua. Nesse reforço semântico, no entanto, se sobre-instala a expressividade da gradação fônica das vogais tônicas das palavras: além do pleonasmo fônico sobre o significado semântico natural, textualizado, há delicada sugestividade de afastamento.

Na estrofe final, verifica-se o mais evidente emprego da bipolaridade, ao lado (como em todo o poema) do uso da nasalidade, utilizada como recurso musical:

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha,
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...

Finalizando: o título (Duas Almas) aponta à dualidade e à espiritualidade, o que leva o leitor a buscar no soneto mais do que simplesmente conceitos de solidão, amor e fugacidade."

****

Apesar de Cícero Galeano, como um bom acadêmico pós-modernista, sempre tentar colocar Wamosy além do Simbolismo - como em uma falaciosa tentativa de salvar a sua alma dos "precitos", dos quais só restaram dois realmente bons (na visão da academia) - Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens -, o texto traz uma análise interessante desse poeta gaúcho, falecido no combate de Poncho Verde - ocorrido durante a Revolução de 1923, em 03/09/1923.

Posto-lhes, para a melhor apreciação de Duas Almas (dividido por Cícero), o soneto inteiro.

DUAS ALMAS - Alceu Wamosy

Ó tu, que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
Entra, e sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
Vives sozinhas sempre, e nunca foste amada.

A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
E a minha alcova tem a tepidez de um ninho.
Entra, ao menos, até que as curvas do caminho
Se banhem no esplendor nascente da alvorada.

E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
Essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
Podes partir de novo, ó nômade formosa!

Já não serei tão só, nem irás tão sozinha,
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...



Abraços,
Cardoso Tardelli


3 comentários:

  1. não seria a 'nômade formosa!' a Morte?
    sempre li esse poema como se as duas almas solitárias fossem o eu-lírico dilacerado pela solidão à espera dela, a amiga solitária.

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  2. O soneto "DUAS ALMAS", reproduzido no texto, não confere com o original composto por Alceu Wamozy. Ele está mais próximo do plágio escrito pelo padre Evaristo de Paula, que o declamou em 25 de abril de 1915 na casa do poeta Coelho Neto, atribuindo a si a autoria. O plágio apresenta algumas alterações - colocação de pronomes, pontuação, troca de verbos - feitas pelo plagiário. O soneto original, escrito por Wamozy, está a seguir:

    DUAS ALMAS

    Ó tu que vens de longe - Ó tu que vens cansada,
    Entra, e sob este teto hás de encontrar carinho:
    Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
    Vives sozinha sempre, e nunca fostes amada!

    A neve anda a branquear lividamente a estrada,
    E a minha alcova tem a tepidez de um ninho...
    Entra, ao menos, até que as chuvas do caminho
    Banhem-se no esplendor nascente da alvorada!

    E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
    Essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
    Podes partir de novo, ó nômade formosa!

    Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
    Há de ficar comigo uma saudade tua!
    Hás de levar contigo uma saudade minha!

    FONTE: CENTENO, Ayrton. Alceu Wamosy. 1 ed. Porto Alegre: Tchê. 1986, p. 51, 2, 3.

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  3. O soneto "DUAS ALMAS", reproduzido no texto, não confere com o original composto por Alceu Wamozy. Ele está mais próximo do plágio escrito pelo padre Evaristo de Paula, que o declamou em 25 de abril de 1915 na casa do poeta Coelho Neto, atribuindo a si a autoria. O plágio apresenta algumas alterações - colocação de pronomes, pontuação, troca de verbos - feitas pelo plagiário. O soneto original, escrito por Wamozy, está a seguir:

    DUAS ALMAS

    Ó tu que vens de longe - Ó tu que vens cansada,
    Entra, e sob este teto hás de encontrar carinho:
    Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
    Vives sozinha sempre, e nunca fostes amada!

    A neve anda a branquear lividamente a estrada,
    E a minha alcova tem a tepidez de um ninho...
    Entra, ao menos, até que as chuvas do caminho
    Banhem-se no esplendor nascente da alvorada!

    E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
    Essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
    Podes partir de novo, ó nômade formosa!

    Já não serei tão só, nem irás tão sozinha:
    Há de ficar comigo uma saudade tua!
    Hás de levar contigo uma saudade minha!

    FONTE: CENTENO, Ayrton. Alceu Wamosy. 1 ed. Porto Alegre: Tchê. 1986, p. 51, 2, 3.

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