quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

O Poema Social de Cesário Verde

Caros leitores do Sacrário das Plangências, o poeta Cesário Verde (1855-1886) nunca havia sido trabalhado no blogue, e este post tem um intento de demonstrá-lo em sua face menos conhecida (aliás, na face menos conhecida do Simbolismo): a do protesto social. Não obstante às comparações que possam fazer com a Poesia Realista, já que pouca coisa é mais desse estilo que o protesto social (apesar de ainda manterem um certo distanciamento do povo em suas grandes obras, ou minimamente descrevendo-o de forma excêntrica e bizarra), Cesário Verde, principalmente com o poema Desastre, publicado em 1875, no Jornal "O Porto".

(Foto: Cesário Verde)

Em carta para Silva Pinto, o escritor que reuniu os poemas de Cesário afim de lançar o histórico "Livro de Cesário Verde" (1887), o poeta, acerca da obra, escreveu: "A poesia que eu hoje te mando é a minha última maneira. Vês por ela que eu não desprezo de modo algum o coração, que quando desprezado não deixa brotar nenhuma obra de arte. Mas o que eu desejo é aliar ao lirismo a ideia de justiça." Provavelmente, Cesário se queixava, quando dizia, de certa forma defensiva, que não desprezava o coração, das críticas que recebera de seu histórico poema Esplêndida, recebido com críticas ferozes, frias, num pleno ataque de incompreensão da crônica literária da época.

O poema, talvez um dos mais desconhecidos do autor, e também dos mais diferentes, apresenta um Cesário que "abandona o discurso irônico", procurando "expressar e revestir-se de sentimentos nobres, para educar sentimental e moralmente o leitor", como definiu Mário Higa, organizador dos "Poemas Reunidos de Cesário Verde", da Ateliê Editorial (2010). O curioso é que o objetivo moral de um poema ia de encontro com as "leis-baudelairianas", se assim podemos falar, seguidas também por Cesário Verde (apesar do português ter sido um poeta extremamente singelo). Baudelaire sempre negou a função moral da poesia, dizendo que o poeta tem de escrever um poema pelo simples prazer de fazê-lo, sem se preocupar em ser um ablutor dos ramos da sociedade.

Mas, enfim, eis o poema referido: 

DESASTRE


Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,
Soltando fundos ais e trêmulos queixumes;
Caíra dum andaime e dera com o peito,
Pesada e secamente, em cima duns tapumes.



A brisa que balouça as árvores das praças,
Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,
Trazendo em sangue negro os membros ensopados.



Um preto, que sustinha o peso dum varal,
Chorava ao murmurar-lhe: "Homem não desfaleça!"
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça,
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.



Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes
Corriam char-à-bancs cheios de passageiros 
E ouviam-se canções e estalos de chicotes,
Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.



Viam-se os quarteirões da Baixa: um bom poeta,
A rir e a conversar numa cervejaria,
Gritava para alguns: "Que cena tão faceta!
Reparem! Que episódio!" Ele já não gemia.



Findara honradamente. As lutas, afinal, 
Deixavam repousar essa criança escrava, 
E a gente da província, atônita, exclamava:
"Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!"



Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;
Mornas essências vêm duma perfumaria,
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,
Numa travessa escura em que não entra o dia!



Um fidalgote brada a duas prostitutas
"Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!"
Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas
E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.



Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer,
De bagas de suor tinha uma vida cheia;
Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,
Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.



Depois da sesta, um pouco estonteado e fraco
Sentira a exalação da tarde abafadiça;
Quebravam-lhe o corpinho o fumo do tabaco
E o fato remendado e sujo da caliça.



Gastara o seu salário - oito vinténs ou menos -,
Ao longe o mar, que abismo! e o sol, que labareda!
"Os vultos, lá em baixo, oh! como são pequenos!"
E estremeceu, rolou nas atrações da queda.



O mísero a doença, as privações cruéis
Soubera repelir - ataques desumanos!
Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos
Andara a apregoar diários de dez-réis.



Anoitecia então. O féretro sinistro
Cruzou com um coupé seguido dum correio,
E um democrata disse: "Aonde irás, ministro!
Comprar um eleitor? Adormecer num seio?"



E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,
- Conservador, que esmaga o povo com impostos -,
Mandava arremessar - que gozo! estar solteiro! -
Os filhos naturais à roda dos expostos...



Mas não, não pode ser... Deite-se um grande véu...
De resto, a dignidade e a corrupção... que sonhos!
Todos os figurões cortejam-no risonhos
E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.



E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa,
Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas:
Isto porque o patrão negou-lhes a licença,
O inverno estava à porta e as obras atrasadas.



E antes, ao soletrar a narração do fato, 
Vinda numa local hipócrita e ligeira, 
Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefato:
"Morreu!? Pois não caísse! Alguma bebedeira!"




É impressionante como a "guerra-de-classes", o desdém de uma elite referida (e quando dá reparo, cogita negativamente as possibilidades circundantes ao desastre - sempre negando a humanidade do humilde), a própria cena de grande cidade, com o seu cotidiano praticamente inatingível, mesmo com a morte relatada pelo eu-lírico, enfim, como todo o poema Desastre nos remete ao nosso próprio tempo, à nossa própria vivência nas grandes cidades, à convivência com a desigualdade, fazendo com que o poema transforme-se num um claro caso de atemporalidade devido ao tom contemporâneo que toma. E, talvez aí, acima de seus méritos e de seu destaque dentro da obra do autor - já que não é o melhor poema de Cesário, claramente -, resida a referência maior sobre o social poema Desastre.

Abraços,
Cardoso Tardelli

2 comentários:

  1. Acho no Cesário o mesmo que acho no Antônio Nobre, uma proximidade com o povo da época, uma poesia menos distante.

    Faz um post pro autor de "Sangue", Da costa e Silva. Conhece? é uma pérola!

    ResponderExcluir
  2. O "Só" é um livro simples - bem diferenciado dos livros que o sucederam (de Eugênio de Castro ao Camilo Pessanha). O Da Costa e Silva é magnífico - aliás, apesar de ser um poema "recorrente" na demonstração da poesia simbolista brasileira, o "Madrigal de um Louco" é um dos exemplares mais interessantes do jogo que a palavra versus forma visual de um poema pode causar (vide que desde o Romantismo já se fazia isso, mas sem um efeito igual ao do Costa e Silva). Já o citei às vezes, mas acho válido um post somente para ele. Abraços!

    ResponderExcluir