sábado, 10 de março de 2012

O Vocabulário Litúrgico no Simbolismo

Caros leitores do Sacrário das Plangências, cá faço uma postagem bem diferente das demais encontradas neste blog. Visando tratar do vocabulário de um estilo, e também acentuando a evidência de que esse vocabulário não era em uma totalidade estranho aos leitores, negando, portanto, a face "excêntrica" comumente atribuída ao movimento, escrevo essa postagem com o intento de desvendar alguns dos vocábulos mais comuns dos Simbolistas, poetas que, apesar de muito ligados ao Catolicismo, eram julgados como satanistas pela sociedade e pelos críticos literários, numa derivação néscia do aspecto "decadente" do estilo e do eu-artista. Além de tudo, analisaremos os motivos pelos quais esses vocábulos estão sendo postos de lado mesmo numa sociedade essencialmente religiosa.

No Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, de Andrade Muricy, em seu volume II, há uma tabela que nos aponta os vocábulos que eram mais comumente usados. Como o escaneamento da tabela torna-se impossível devido à grossura do livro, transcrevo cada vocábulo e os seus significados:

VOCÁBULOS DA LITURGIA CATÓLICA UTILIZADOS NO SIMBOLISMO:

Âmbula: Pequeno vaso onde se conservam os santos-óleos .
Ângelus: Ave-Maria rezada ao amanhecer, ao meio-dia, e ao poente (do latim Angelus Domini)
Antífona: Versículo que se canta antes dos salmos e que depois se repete alternadamente em coro.
Ara: Altar; altar rústico de pedra.
Ascetério: Retiro dos ascetas (figuradamente: abadia, convento), portanto, daqueles que se dedicam à ascese, exercício que leva à efetiva realização da Virtude e da Moral por meio da devoção e da penitência. Muito utilizado pela corrente moralista do Simbolismo, como a de Cruz e Sousa.
Baldaquino: Armação ornamental sustentada por colunas, que serve de cúpula para um altar, trono ou leito.
Burel: Roupagem dos frades e freiras. Por extensão: luto e tristeza.
Cantochão: Canto litúrgico da Igreja Católica Ocidental, baseada na teoria monódica, cujo ritmo se baseia nas divisões apenas na divisão do fraseado e na acentuação; canto gregoriano. Muito utilizado, segundo Andrade Muricy, com a imagem de "cantochão do ocaso".
Cardinalício: Relativo a cardeal. Fig: rico, pomposo.
Cela: Aposento de frades ou de freiras, nos conventos.
Cenóbio: Habitação dos monges; convento. Por extensão: agrupamento de espíritos elevados.
Cenotáfio: Momento fúnebre elevado à memória de alguém, mas que não lhe encerra o corpo.
Cibório: Vaso onde se guardam as hóstias sagradas.
Círio: Vela grande, de cera.
Claustro: Convento; por extensão: isolamento; vida monástica.
Comunhão: Ao ou efeito de comungar.
Dalmática: Veste litúrgica que diáconos e subdiáconos usam sobre a batina.
De-Profundis: O salmo dos defuntos.
Dulia: Culto prestado aos santos e aos anjos.
Eremitério: Lugar onde vivem os eremitas; convento. (Por extensão: lugar ermo, solitário, calmo, silencioso).
Ermida: Capela fora do povoado, capela solitária. (Muito usual; proveio, segundo A. Muricy, da poesia pastoral portuguesa, não obstante).
Estola: Fita larga que os pastorais põem por cima da batina.
Evangeliário: Livro que contém os Evangelhos para a missa do dia a dia.
Exorcismo: Cerimônia ou oração para libertar da possessão demoníaca.
Extrema-Unção: Unção dos enfermos (um dos sete sacramentos da igreja católica). Figurado: agonia.
Hissope: O mesmo que aspersório, ou seja, instrumento pelo qual se asperge (borrifa, orvalha) a água-benta.
Hostiário: Caixa para hóstias ainda não consagradas.
Kiriale: Livro litúrgico; contém o Kyrie e o Ordinário da Missa. (Título de um dos livros de Alphonsus de Guimaraens).
Kyrie: Invocação a Deus. No cristianismo primitivo, esta invocação era feita enquanto os fiéis encaminhavam-se para a igreja. (Usado como oração suplicativa).
Lausperene: Louvor perpétuo ao Santíssimo Sacramento (do Latim Laus, que é louvor, e do Italiano perenne, que em Português tornou-se perene, portanto "louvor perene"). Em Francisca Júlia, marcou esse vocábulo o verso derradeiro de Noturno: "O Lausperene mudo e súplice das almas".
Litania: Oração formada por uma série de invocações curtas e por respostas repetidas.
Liturgia: Culto público e oficial instituído pela Igreja Católica para a Missa.
Memento: Cada uma das preces da parte central da missa.
Miserere: Lamentação, súplica.
Missa: Celebração da Eucaristia, sacrifício do Corpo e do sangue de Jesus Cristo, feito no altar, por um sacerdote. Muitas vezes, "missa" tem denotação de culto, tão somente, sendo expandido a várias percepções da passionalidade humana, desde o Sonho até o Amor.
Oblato: Oferecido a Deus; leigo dedicado à fé sem qualquer voto eclesiástico e claustral.
Ofertório: Parte da missa em que se oferece a Deus o pão e o vinho.
Ofício: Oração pública da Igreja; a Missa.
Pálio: Sobrecéu portátil, com varas, que se leva em procissões para cobrir o sacerdote que conduz a custódia. Fig: o céu.
Paramento: Vestuário e ornatos eclesiásticos.
Penitência: Um dos Sete Sacramentos da Igreja Católica.
Pontificial: Relativo ao papa. Fig: pomposo, rico.
Prece: Súplica religiosa; oração. Por extensão: a obra poética.
Salmo: Oração em gênero poético.
Saltério: Designação que os setenta tradutores do Antigo Testamento deram ao hinário de Israel, ou seja, aos salmos.
Responso: Versículos rezados ou cantados alternadamente por dois coros; oração a Santo Antônio para que não se aconteça malograrias.
Réquiem: Ofício aos Mortos, que principia da sentença "dai-lhes o repouso eterno".
Rito: Regras e cerimônias que se devem observara na prática da Religião; ritual.
Rosa-Mística: Ladainha lauretana de Nossa Senhora.
Sacramento: Sinal sagrado instituído por Jesus Cristo para a distribuição da salvação divina àqueles que, aceitando-o como Salvador, fazem-no como uma Profissão de Fé. Sacramental: Adj: Por extensão: solene, majestoso.
Santos-Óleos: Unção Espiritual.
Setenário: Exercício de devoção que durava sete dias. (Referência ao número cabalístico sete, também). Uma das obras mais célebres de Alphonsus de Guimaraens chama-se Setenário das Dores de Nossa-Senhora.
Teofania: Manifestação de Deus em algum lugar, ocorrência, ou pessoa.
Turíbulo: Caçoula de incenso.
Torre de Marfim: Louvor da ladainha lauretana de Nossa Senhora. Transcrevo a magnífica explicação de A. Muricy do significado do termo ao Simbolismo: "Tem o sentido de isolamento altivo, de solidão por aristocratismo de alma ou de espírito. Também sinônimo de 'arte pela arte' alheia à política e, pelo menos diretamente, aos problemas de ordem social. Apesar de os simbolistas não abstraírem dos interesses humanos, na sua turris eburnea, a expressão, hoje, é empregada na acepção restritiva de arte egoisticamente subjetiva. O volume de versos de Tristão da Cunha chama-se Torre de Marfim; Na Torre de Marfim é uma das obras de Zeferino Brasil".
Trindade: A união do "pai, do filho e do espírito santo" em um só Deus (o Mistério da Santíssima Trindade); também colocado como a hora em que se tocavam os sinos ao anoitecer, ou relativo a essa hora.
Unção: Transmissão ou confirmação de um caráter sacro.
Vésperas: Na Liturgia das Horas, hora canônica posterior à Noa (que é às 15:00), referenciando-se ao cair da tarde, quando Vênus, no horizonte, começa a aparecer.

Como eu havia dito no início da postagem, muitos desses vocábulos foram tachados de estranhos e excêntricos à primeira vista. Porém, não seria de grande dificuldade apontar alguns que faziam parte de estilos poéticos dominantes ou há pouco dominantes. "Aras", "Dulias", "Claustros" eram facilmente encontradas em Álvares de Azevedo, o nosso maior poeta do Romantismo (além de em outros poetas do estilo, como Fagundes Varela). "Réquiem", "Trindade", "Sacramento" e "Lausperene", entre outros, eram encontrados nos poemas com temáticas fúnebres ou religiosas do Parnasianismo, que vez ou outra perambulava por esses temas personalíssimos, deixando de lado a opção impessoal da poesia. Outra evidência da presença dos vocábulos perambula pelo óbvio: apesar do cientificismo e de uma pseudo-lógica que estava contaminando a sociedade, muitos desses vocábulos já estavam evidentemente anexos ao vocabulário do brasileiro, que era (e ainda é) determinantemente um povo religioso.

É de plena importância perceber que grande parte desse vocabulário fora perdido não por falta de documentos ou de textos que contenham-no, mas pelo posicionamento errôneo, mas muito comum, do "não uso no dia-a-dia", que fada obras ao esquecimento pela falta de capacidade de divisão de momentos formais e informais do uso da Língua (e que fique claro que a serventia do uso de ambos são importantes, além do óbvio reconhecimento de que a forma culta pode acrescida, mas não por um meio no qual ela possa se expandir por intermédio de erros). Ora, um dos grandes problemas da negação de um vocabulário vasto é o empobrecimento de uma Língua que sempre se destacou pela sua exemplar riqueza, dando não somente aos artistas, mas à população também, variáveis maneiras de se expressar por meio da linguagem, não tendo de lançar mão de expressões repetidas e mendigais, como vemos hoje - e que ainda são postas como "o futuro da Língua por adaptação à sociedade".

Sendo esse vocabulário típico de uma crença, mas, no caso exposto no tópico, típico também de estilos artísticos, a sociedade contemporânea, cuja interpretação para a altiva espiritualidade humana resume-se ao nulo, observa tais vocábulos com receio e um interno hermetismo, adjetivando a poesia como mística ou misticista - algo que os próprios Simbolistas não negavam - mas numa tentativa de colocar a Arte como falaciosa, por não demonstrar a realidade como ela é, sendo demasiadamente quimérica.

O ponto é que o vocabulário em questão não somente se refere à Fé e à Religião, mas a um elevado grau de espiritualidade. Na sociedade em que vivemos, o espectro do Niilismo sem argumentos, do ateísmo vazio, do "viver e deixar viver", e por assim ser, sem questionamentos, é uma das grandes sombras viventes, resultando, em muito, pela opção ao Cientificismo em detrimento da Arte, pelo não-ser em detrimento do Humanismo, pela inclinação à Doença da Obviedade-Sinestésica em detrimento da inclinação a obviedade dos Mistérios. Portanto, todo um aspecto de um estilo, senão o estilo como um todo (que era essencialmente religioso, com extrema feitio Marial), poderia ser esquecido por uma sociedade para a qual o aspecto religioso de algum autor só o diminui, por, como descreveu Andrade Muricy na questão da "Torre de Marfim", transformar a arte do poeta em "sinônimo de 'arte pela arte' alheia à política e, pelo menos diretamente, aos problemas de ordem social.", na anti-artística necessidade atual da arte ser fidedigna a tudo o que vemos.

Abraços,
Cardoso Tardelli

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