quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Um descobrimento dos Simbolistas Brasileiros - Parte IV

Caros leitores de o Sacrário das Plangências, na parte IV deste descobrimento dos Simbolistas brasileiros, passaremos pela obra do já prometido Emiliano Perneta, também pela fase Simbolista da obra de Medeiros e Albuquerque, cuja importância inaugural para o movimento é inquestionável, e pelo essencial Nestor Vítor, amigo maior de Cruz e Sousa e defensor do Movimento.

POEMAS SIMBOLISTAS:

Emiliano Perneta (1866 - Sítio dos Pinhais (PR) -1921 - Curitiba)
Ao falar de Emiliano Perneta, talvez estejamos nos referindo a um dos mais significativos poetas que aderiram ao Simbolismo no Brasil, não somente por sua obra - espetacular - mas também por sua vida de fé literária, exposta desde os trajes Dândis (ao modo Théophile Gautier) ao culto de um recinto, uma "Torre de Marfim", que era o seu quarto, quando estudante da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, lugar de isolamento e sonho para ele e para os amigos, curiosamente apelidado de "autocracia da anarquia". Ao contrário do que se possa pensar, Perneta nunca foi um abstêmio político - apesar de raramente representar essa faceta nos poemas, sendo um Republicano e Abolicionista declarado. Aliás, tendo Cruz e Sousa como um dos companheiros do furor primeiro do Simbolismo, Perneta via o penar constante do amigo num Brasil com a mentalidade ainda escravista mas de recém abolida escravidão, tendo, por consequência, uma ânsia de proteção ao Cisne Negro (o que, na verdade, era óbvio em grande parte dos que acompanhavam Cruz e Sousa). Foi Perneta um dos Simbolistas da geração primeira mais ousados ritmicamente, estéticamente e tematicamente, nunca podendo, porém, gozar do prestígio da Literatura Brasileira, nadando no limbo lúgubre do esquecimento até os atuais dias.


O BRIGUE*

Num porto quase estranho, o mar de um morto aspecto,
Esse brigue veleiro, e de formas bizarras,
Flutua há muito sobre as ondas, inquieto,
À espera, apenas, que lhe afrouxem as amarras...

Na aparência, a apatia amortece-lhe o esforço;
Se uma brisa, porém, ao passar, o embalsama
Ei-lo em sonho, a partir, e, então, empina o dorso,
Bamboleia-se, mais gentil do que uma dama...

Dentro a maruja acorda ao mínimo ruído,
Deita velas ao mar, à gávea sonda, o ouvido
Alerda, o coração batendo, o olhar aceso...

Mas a nau continua oscilando, oscilando...
Ó quando eu poderei, também partir, ó quando?
Eu que não sou da Terra e que à Terra estou preso?

(De Setembro, póstuma coletânea de 1934)

*Mais uma reverberação do "O Albatroz", de Baudelaire, aqui em nossa terra.

Glossário:
Brigue: Antigo navio à vela.
Embalsamar: Impregnar de aromas.

SOLIDÃO*

V

Oh! para que sair do fundo deste sonho,
Que o destino me deu, e que a Vida me fez,
Se eu quando, a meu pesar, casualmente, ponho
Fora os pés, a tremer, volvo, ansiado, outra vez.

O meu lugar não é no meio de vocês,
Homens rudes e maus, de semblante risonho,
Não é no meio de tamanha insipidez,
Dum egoísmo atroz, dum orgulho medonho!

O meu lugar é aqui, no seio desta ruína,
Destes escombros que reluzem como lanças,
E destes torreões, que a febre inda ilumina!

Sim, é insulado, aqui, no cimo, bem o sei!
Entre os abutres e as Desesperanças.
E dentro deste Horror sombrio, como um Rei!

(Novembro de 1905, de Ilusões)

*Segundo Andrade Muricy "o mais radical manisfesto de "torre-de-marfim" de todo Simbolismo brasileiro".

Glossário:
Insulado: Separado, ilhado, isolado.
Torreão: Torre larga e cheia de fendas, feita sobre um castelo.
Cimo: A parte superior de algo; o alto de um objeto.

MORS

Nesse risonho lar,
A dor caiu neste momento,
Como se fosse a chuva, o vento,
O raio, e bate sem cessar...
Bate e estala,
Como uma louca,
De boca a boca,
De sala em sala...
Somente tu, flor delicada,
Como quem veio
Fatigada
De um passeio,
Tombaste ali, silenciosa,
Sobre o sofá,
No abandono,
Pálida rosa,
De um longo sono,
De que ninguém te acordará!

(De Setembro)

Glossário:
Mors: Personificação da Morte.

Medeiros e Albuquerque (1867 - Recife -1934 - Rio de Janeiro)
A essencialidade de Medeiros e Albuquerque para o movimento Simbolista brasileiro, talvez, esteja no simples fato dele ter sido o primeiro a ter contato, na Europa, com as obras dos decadentistas franceses e de ter tomado a iniciativa de trazer tais obras para o Brasil, causando uma real mudança no prostrado panorama literário daqui - impregnado do descritivismo Parnasiano. Poeta também, sofreu influência dos Simbolistas franceses num primeiro momento, mas rejeitando, em sua obra, os alicerces que o movimento em seu estro construiu. Independentemente do posterior caminho de sua obra, a seção Simbolista da obra de Medeiros e Albuquerque contém as características mais típicas do estilo, inclusive um número grande maiúsculas individualizadoras e de símbolos religiosos.

SALMO

A Filinto de Almeida

Eu sinto que a Loucura anda rondando
o meu cérebro exausto e fatigado.
Das Alucinações o torvo bando
dança no meu olhar negro bailado...

Chega-te, doce Amiga! mas não tragas
tristes visões de fundas agonias:
antes as minhas vê se tu esmagas
nas tuas brancas mãos, magras e frias!

Deusa! Senhora! Mãe dos desgraçados!
Consoladora da Miséria Humana!
que eu não escute da Razão os brados,
ó Minha Nobre e Santa Soberana!

Doze às matilhas de teus Pesadelos
que estraçalhem nos dentes os meus sonhos!
que matem! que espedacem meus anelos!
meus desejos mais santos! mais risonhos!

Para arrancar este cruel tormento,
que na minh'alma desolada mora,
extirpa-me este cancro: o Pensamento,
que em martírios horríveis me devora!

Que não fique uma ideia - uma que seja!
Mata-as como serpentes venenosas!
Enche de paz e sombra benfazeja
do meu cérebro as células trevosas!

Que a sensação gostosa de vazio,
que há no meu crânio às vezes nos arcanos,
o torne como o cárcere sombrio
de um castelo deserto, há milhões de anos!

E andem por fora das loiras primaveras,
ou do inverno os horrores soluçantes,
quando, através das grades, como às feras,
me mostrarem no hospício aos visitantes,

eu não tenha em meus olhos apagados
o mais frouxo clarão de inteligência,
átona a face, os lábios afastados
num sorriso boçal de inconsciência...

E eles, vendo-me rir, julguem-me com pena
que, atrás de um sonho, meu olhar vagueia,
sem notar que minh'alma jaz serena,
às alegrias como a tudo alheia.

Calmo e insensível, pra falar ao mundo
jamais haja uma frase em minha boca!
E, quando a voz escape-se do fundo
de minha goela - pavorosa e rouca -

à hora em que do mar o undoso açoite
batendo a encosta, rijo, tumultua,
que, estrídula, cortando a fria noite,
seja como a de um cão, uivando à lua!

(de Poesias, publicado em 1905)

Glossário:
Torvo: Que causa terror; pavoroso, lúgubre, medonho.
Anelo: Anseio, afã, desejo ardente.
Extirpar: Arrancar pela raiz; destruir.
Trevoso: Tenebroso, escuro, caliginoso, aflitivo.
Arcano: Mistério, lugar misterioso, recôndito.
Undoso: Em que há ondas ou o que as forma.
Rijo: Rígido, duro; forte.
Estrídula: Estridente; som agudo.

Nestor Vítor: (1868 - Paranaguá (PR) - 1932 - Rio de Janeiro)
Qualquer que seja a visão sobre o nosso Simbolismo, um dos personagens que é inafastável é o paranaense Nestor Vítor (ou Víctor, dependendo da grafia de época). Amigo maior de Cruz e Sousa, dedicou-se ao movimento Simbolista como um padre dedica-se à Religião. Foi por intermédio de Nestor Vítor que os livros Faróis (1900) e Últimos Sonetos (1905) de Cruz e Sousa, ambos póstumos, foram lançados. Teve Nestor Vítor também uma grande influência no "Pós-Simbolismo", principalmente em Andrade Muricy. Segundo este, o "panorama é, sob muitos aspectos, obra sua. Dele recebi a tradição do movimento simbolista; por seu intermédio (e também de Emiliano Perneta e Silveira Neto) penetrei o espírito daquela preamar de espiritualismo vivo (...)". O fiel amigo de Cruz e Sousa teve um grande destaque na crítica literária e política, tendo somente poemas dispersos reunidos, sendo o longo "A Cruz e Sousa" o seu melhor (a visão do corpo do Cisne Negro voltando de Minas Gerais num horse-box, sem estar num caixão, como um animal morto, foi como o fim do mundo para os seguidores do autor de Faróis).


O CONSTRUTOR

Moureja, moureja, moureja,
Ora à torre subindo,
Para ver não se sabe o que seja,
Ora descendo às entranhas da terra, ouvindo
Não sei que voz que o chama.
Coberto de áureo pó - como que estrela e lama -,
Quando vem a noite ele descansa;
Tão exausto, porém, que ao vê-lo, não se sabe
Se o título de idoso mago é que lhe cabe
(Mas que ar mesquinho é que ele tem!) ou o nome de criança.

Glossário:
Mourejar: Trabalhar sem descanso.

MORTE PÓSTUMA

Et vraiment quand la mort viendra
que res-t-il?
P. Verlaine

Desses nós vemos: lá se vão na vida,
Olhos vagos, sonâmbulos, calados;
O passo é a inconsciência repetida,
E os sons que tem são como que emprestados.

- Dia de luz. - Respiração contida
Para encontrá-los despreocupados,
Aí vem a morte, estúpida e bandida,
Rangendo em seco os dentes descarnados.

Mas embalde ela chega, embalde os chama:
Ali não acha nem de longe aqueles
Grandes assombros que aonde vai derrama!

E abre espantada os cavos olhos tortos:
Vê que eles têm os olhos vítreos, que eles...
Eles já estão há muito tempo mortos!

(de Transfigurações, reunião de esparsos)

Glossário:
Embalde: Em vão; inutilmente.
Cavo: Côncavo, vazio, oco.
Vítreo: Que tem aspecto de vidro; vidrado, absorto, encantado.

O MARIBONDO METAFÍSICO*

Aquele maribondo, que entrou pela janela do meu quarto, anda fazendo heroicas e incessantes investidas ao teto de um modo que mete pena, mas que nos faz refletir sobre o caso.
A pobre vespa não pode compreender que de um momento para outro deixasse de existir o infinito. Não concebe que entre si e o céu se interponha um obstáculo impossível de arredar. Certo nem mesmo tem a noção do que tal obstáculo venha a ser, e de si para si entenderá que o teto branco é apenas uma modalidade do espaço que ela não conhecia, modalidade menos adelgaçada, tão só, de transposição mais árdua do que essa outra que até aqui ela vira toda azul.
E no fundo o maribondo pensa bem. É inegável que o infinito continua a existir apesar da interposição que há entre ele e aquilo que se abriga sob o modesto teto desta casa. Se o pobre vivente viesse dotado de forças bastantes para uma teimosia maior, não lhe fora preciso passar um século em luta para poder acabar vencendo, verificando que a verdade está com ele. Sim, o infinito continua a existir; não decorrerá muito tempo, em comparação com a eternidade, para que esta débil barreira de tábuas, que os homens interpõem entre as asas deste inseto e o livre espaço, desabe miserável, dando razão àquela fé obsidente. Não há dúvida, o azul do céu ainda se há de ver de novo onde hoje branqueja a impertinência representada por aquele passageiro artefato humano.
A negra e sonhadora abelha apenas se engana na noção que tem das suas limitadíssimas forças, da sua capacidade de resistência e permanência neste mundo. Mas, em última análise, filosoficamente falando, ela tem um sentimento das cousas mais certo com a sua confiança no infinito, do que tantos homens que vivem hoje tomados da obsessão do relativo, querendo suprimir dentre as preocupações humanas a crença e a confiança no absoluto. Este maribondo é um metafísico incurável, mas, por isso mesmo, mais percuciente do que quantos filósofos humanos pretendem emancipar nossa Espécie das preocupações com o Além.

(de Folhas que Ficam, publicado em 1969)

*Notem o Símbolo (Maribondo) e a divagação que deságua numa conclusão totalmente anti-Positivista e, até mesmo, anti-Naturalista, correntes de pensamentos com as quais Nestor Vítor não tinha simpatia.

Glossário:
Adelgaçar: Tornar mais fino; reduzir.
Obsidente: Obsessivo.
Percuciente: Profundo, agudo, pungente, penetrante, sagaz.
Emancipar: Libertar, tornar livre.

Caros leitores de o Sacrário das Plangências, o movimento Simbolista tem de ser entendido como um Processo de Pensamento, de certa forma, em completo. Há o Simbolismo nas Artes Plásticas, na Filosofia (comentado também por Nestor Vítor), na Prosa, na Poesia, no Teatro, na Prosa-Poética e, isso tudo, precedido pela forma musical cromática de Richard Wagner (1813-1883), a quem Gama Rosa (1852-1918) - o primeiro jornalista brasileiro a descrever em detalhes o movimento decadentista francês e, posteriormente, um defensor do movimento no Brasil - relacionou com os Simbolistas por pura indução erudita. O objetivo dessas seções de "Descobrimento dos Simbolistas Brasileiros" é, de fato, mostrar que o movimento foi completo, mas por razões de alento ufanista Moderno, esquecido.

Abraços, Cardoso Tardelli

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Um descobrimento dos Simbolistas Brasileiros - Parte III

Caros leitores de o Sacrário das Plangências, sigo nesta postagem com a proposta de descobrimento do nosso Simbolismo. Passaremos por alguns dos mais essenciais personagens do movimento, por mais que hoje estejam esquecidos.

POEMAS SIMBOLISTAS:

Gonzaga Duque: (1863 - Rio de Janeiro -1911 - Rio de Janeiro)
Essencialmente prosista, esse autor, segundo Andrade Muricy, foi uma das "mais importantes figuras do Simbolismo brasileiro". E isso é decorrente de vários motivos, partindo desde a sua extrema correspondência com a primeira geração do movimento, tendo desta, frutífera admiração por Cruz e Sousa e sendo admirado por outros poetas, como Gama Rosa. Sua prosa teve grande deságue na segunda geração do Simbolismo.

O VELHO HARPISTA

E a música gemia na velha harpa com uma interpretação dolorosa e íntima, passava, varava o vozear da sala com um ganido sofredor de rafeiro gafento, a morrer. De quando em quando, nas pausas da algazarra, a languidez de seus compassos agitava-se no ar toldado e acre, lembrava as faixas de uma grinalda fúnebre desdobradas na aragem, levadas num esquife que conduzem; por instantes, os sons esmoreciam, perdiam-se ruído das conversas, sussurrando apenas, humildes, pequeninos, imperceptíveis quase. Porém o artista cingia mais a cara vinculada à canelura coríntia do instrumento, como a comunicar-se-lhe, a sorver-lhe os sons; as engelhas de suas faces cavam-se mais fundas, o seu olhar doía. E, num desespero, as notas cantavam outra vez mais alto, subiam para o ar num desabafo de ciúmes pelo quadro do espaço o rumorejo impertinente desdenhoso, fazendo-se escutar. Os dedos do artista confrangiam-se num tremor, eletrizava-o uma emoção que levantava a sua cabeça militar numa altivez de vencido sob o estalar de uma injúria. A esfarripada melodia verdiana criava um vigor impressionante, refundia-se por completo nas esvaídas vibrações, como um velho poema que reencontra um novo século de regressões sentimentais.
(...)
(De Mocidade Morta, 1899)
Glossário:
Ganido: Grito lamentoso dos cães. Fig: Voz Aguda.
Languidez: Fraco, doentio, mórbido; Voluptuoso, sensual, langoroso.
Acre: Amargo. Fig: Áspero, rude.
Esquife: Caixão de defunto.
Cingir: Rodear, unir, limitar o espaço.
Canelura: Cada uma das ranhuras abertos para ornamentar as hastes do instrumento
Coríntia: Relativo às castas de uva Corintio, da Grécia.
Engelhar: Contrair, murchar.

Oscar Rosas: (1864 - Desterro (SC) - 1925 - Rio de Janeiro)
Personalidade essencial do movimento Simbolista, Oscar Rosas foi um exímio poeta também. Amigo de Cruz e Sousa e bem relacionado com as boemias literárias cariocas, apresentou o Cisne Negro ao círculo literário Simbolista que se formava no Rio de Janeiro, quando da primeira ida de Cruz e Sousa para a cidade. Esse ato influenciou todo o movimento do Simbolismo brasileiro, pois, ao estabelecer-se definitivamente na Corte, as leituras do estilo que Oscar Rosas apresentou a Cruz e Sousa tinham florescido - e o autor de Broquéis já era um Simbolista assumido. Rosas era um "Simbolista radical", polemista e defensor assíduo do tom solene e imaginoso que o Símbolo traz na literatura. Foi, junto a Cruz e Sousa, Emiliano Perneta e Bernadino Lopes, um dos fundadores do movimento Simbolista entendido no sentido de ação. Os quatro lançaram uma campanha contra a arte pela arte, contra o Parnasianismo, a favor do decadentismo e não raro a favor do satanismo por meio de colunas editadas na Folha Popular, sempre sob o Símbolo de um Fauno - que tornar-se-ia marca da primeira geração do Simbolismo. Toda a produção de Oscar Rosas é esparsa em jornais. O Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro foi o primeiro a reunir uma pequena parte.

VISÃO

Tanto brilhava a luz da lua clara,
Que para ti me fui encaminhando.
Murmurava o arvoredo, gotejando
Água fresca da chuva que estancara.

Longe de prata semeava a seara...
O teu castelo, à lua crepitando,
Como um solar de vidros formidando,
Vi-o como ardentíssima coivara.

Cantigas de cigarra na devesa...
E, pela noite muda, parecia
Cantar o coração da natureza.

Foi então que te vi, formosa imagem,
Surgir entre roseiras, fria, fria,
Como um clarão da lua na folhagem.

Glossário:
Seara: Campo de cereais.
Crepitar: Estalar (como arder em fogo).
Coivara: Restos de ramagens que não foram atingidas pela queimada.


TERRA PROMETIDA

A Oliveira e Silva

Não vibro pela enxada do coveiro,
Nem temo a cova clássica e sombria;
Morrer, como cigarro num cinzeiro,
Doce ventura, assim eu morreria.

Nada restar de todo este cruzeiro,
Nem saudade, nem dor, nem fantasia;
Remir pecados como o Grande Obreiro,
Alto negócio alguém reputaria.

Tremo pela suspeita doutra vida
- A certeza da Terra Prometida
Do Além, desse terrível Amanhã...
E ali chegar, por atração funesta,
Aos sabás em função, em grande festa,
Um júri presidido por Satã.

Glossário:
Obreiro: Operário, obrador.
Funesta: Fúnebre, lúgubre, tristonho; que produz dor, lancinante.
Sabá: Concílio de bruxas que, segundo superstição medieval, tinha a presidência pelo demônio.

Araújo Figueredo: (1864 - Desterro (SC) - 1927 - Florianópolis)
Poeta de extrema sensibilidade temática e estética, não negou a superioridade e liderança que Cruz e Sousa detinha na primeira geração do nosso Simbolismo. Muito amigo do Dante Negro, chegou a se hospedar na derradeira casa de Cruz e Sousa, um pouco deste ter a tuberculose diagnosticada (morreria Cruz somente três meses depois do diagnóstico). Já morando em Laguna, Santa Catarina, Figueredo manda ao amigo uma carta na qual a fama espirituosa de Gavita, esposa de Cruz e Sousa, é confirmada por meio das palavras "na imagem do ébano da tua esposa, imagem afetuosa e santa, iluminada de suprema bondade". Após a morte de Cruz e Sousa, Gavita - que pouco viveu após o ocorrido - foi extremamente receptiva, bondosa e espirituosa com os amigos Simbolistas do Cisne Negro, que davam-lhe o apoio possível no luto. A poética de Figueredo, qual a de muitos do movimento, foi marcada pela temática católica.

TENEBROSO

Se por uma infinita noite escura
Um clarim percorresse o céu profundo,
E chamasse de lá todo este mundo
Que anda cheio de dor e de amargura...

Se nessa noite, a cândida ventura,
A esperança que existe ainda no fundo
D'alma, tombasse a um pélago iracundo,
Tombasse como numa sepultura...

Se em nosso olhar a lágrima rolasse
E dessa amarga lágrima brotasse
Uma ansiedade eternamente fria,

Dize tu, dize tu, Mulher amada,
Se por essa sinistra e longa estrada,
Dize se eu nos teus braços me acharia!

(Publicado em Ascetério, 1904)

Glossário:
Clarim: Instrumento de sopro de timbre estridente.
Pélago: Mar profundo, abismo marítimo. Fig: Abismo, báratro, pego.
Iracundo: Colérico, irado, propenso à ira, enfurecido.

DIVINA GRAÇA

Ao Padre Manfredo Leite

Para sempre lembrados os que choram
Profundamente, com o peito em lanças!
Mas os que choram pelas esperanças
Que os altos céus olímpicos enfloram!

Para sempre lembrados os que imploram
Mares de eterna paz e de bonanças,
E têm a alma como a de crianças
Que as próprias feras docemente adoram!

Ah! pelos que nesse clarão se aquecem
Todas as dores que em dilúvio descem
Toda a gota de lágrima que passa

Nada mais são do que, continuamente,
Diante do olhar de quem se vê doente,
Os Santos-Óleos da Divina Graça!

(Em Ascetério)

Venceslau de Queirós: (1865 - Jundiaí (SP) - 1921 - São Paulo)
Um dos maiores contribuidores para a formação, em São Paulo, do espírito Simbolista. Foi contemporâneo de Faculdade de Direito do Largo de São Francisco de Emiliano Perneta, Olavo Bilac, mas podendo concluir o seu curso somente sete anos após o início por decorrência de enfermidade grave. De poética claramente influenciada pelo estilo baudelairiano, chegou a ser chamado pelo também poeta Ezequiel Freire, numa crítica em um jornal, de "Baudelaire Paulistano".

NEVROSE

(A Teófilo Dias)

I

Na voragem da infinita
Loucura que me suplanta
Há uma serpente maldita
Que me constringe a garganta.

A noite do agro remorso,
- Remorso que me fragoa,
(Noite em que choro e me estorço...)
De pranto e sangue gerou-a.

Corrompem-se-me os sentidos
Entre mórbidos miasmas:
- Ouço na treva gemidos,
- Na sombra vejo fantasmas.

Tomam corpo e forma hedionda
Os sonhos meus mais secretos,
Como frenética ronda
De uma porção de esqueletos.

A fantasia nas garras
Leva-me a um páramo torvo,
Abrindo as asas bizarras
Nos céus azuis como um corvo...

N'alma roeu-me a apatia
As rosas do seu conforto,
Como a larva úmida e fria
Rói a carcaça de um morto.

E o olvido (ai! corre-me o pranto...)
Vai sepultar-me os despojos,
Como farrapos de um manto
Que se espedaçou nos tojos.

Neste incessante destroço,
A razão mais se me afunda,
Como a luz dentro de um poço,
Numa inconsciência profunda.

Como nas noites polares,
De úmida treva retintas,
Farejam ursos nos ares
Abrindo as bocas famintas.

Surgi, visões do passado,
Nesta mudez que me cinge:
Eis o meu seio golpeado,
Sugai-o, lábios de esfinge...

(...)

(Em Versos, publicado em 1890)

Glossário:
Nevrose: Neurose
Agro: Amargo, acre, inclemente.
Fragoar (Neologismo): Emissão ruidosa, estrondosa, semelhante a algo que se quebra.
Estorcer: Torcer com muita força.
Miasma: Emanação de odor pútrido do solo; influência má.
Páramo: Planície deserta.
Torvo: Pavoroso, sinistro, medonho.
Olvido: Esquecimento.
Tojo: Arbusto que tem poucas folhas, espinhos fortes e folhagem amarela.
Retinto: Tinto novamente; que tem cor escura e carregada.
Esfinge: No Simbolismo, imagem clássica da dúvida fatal, do remorso e da sugestão.

Caros leitores do Sacrário das Plangências, no post anterior, havia prometido a postagem de alguns poemas de Emiliano Perneta. O post se alongou e percebi que, se o fizesse, ficaria demasiado longo. Na parte IV, Emiliano será o primeiro a ser analisado - para ele, precisa-se de uma grande atenção, principalmente no aspecto de importância ao movimento.

Abraços, Cardoso Tardelli

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Um descobrimento dos Simbolistas Brasileiros - Parte II

Estimados leitores de o Sacrário das Plangências, dando continuidade ao post número I, postarei, ao menos, um poema de cada Simbolista apontado por Andrade Muricy em seu Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro. No caso desta seção II, haverão alguns poemas em prosa - algo muito cultuado no movimento.

POEMAS SIMBOLISTAS - PARTE II

Virgílio Várzea - (1863 - Desterro (SC) - 1941 - Rio de Janeiro)
Sobre Virgílio, cuja obra tende mais ao Naturalismo do que ao Simbolismo, propriamente dito e confesso, podemos falar que foi um dos introdutores da linguagem simbolista entre literatos totalmente alheios a ela. Grande amigo de Cruz e Sousa, foi um dos que, após a morte do Cisne Negro, fez um dos retratos literários mais fiéis e intensos do autor de Broquéis e Missal.

CANÇÃO DA ESTEPE

No horizonte, A Leste, vinha apontando agora uma tênue barra de claridade láctea, que vestia as águas, ao longe, de vastas placas argênteas. E, daí, a instantes, a lua surgia maravilhosamente, cobrindo a amplidão com o seu imenso velário de tule.
Então, à proa, junto ao castelo, na amurada de bombordo, onde batia em cheio o luar, uma figura esguia e branca de mulher ergueu-se, do meio da massa negra dos imigrantes eslavos - e uma voz suavíssima abriu voo na noite, ritmo lento e balançado, fio de melodia saudosa.
Era uma dessas canções germinadas nas terras rurais de além Dnieper ou de além o Don, onde o homem se bate com o solo ao vento e à chuva, ao calor e à neve. Naturalmente descrevia, na cadência vagarosa das manhãs, o sulcar das charruas para as primeiras plantações, o verdejar alegre das plantas, o crescer florescente das hastes, o amadurecer das espigas, o amoroso cantar da ceifeiras e o reluzir profuso dos grãos, em montões alterosos, entre molduras de palha fofa. Tudo isso de envolta com as esperanças, as tristezas dos mujiques.
As estrofes finais soltaram a emoção, o esquisso vago de um idílio do campo, na amplidão rasa de uma estepe sem termo, ao badalar plangente do Angelus numa torre de campanário longínquo, à margem de indolente rio espelhante, onde dois jovens de se estreitam na última contração de colheita acabada, sob o poente de sangue...

(Publicado em Mares e Camplos, do conto Canções Eslavas)

Glossário:
Argêntea: Com aspecto prateado.
Tule: Tecido de seda.
Dnieper: Um dos maiores rios da Europa, cruzando as atuais Rússia, Belarus e Ucrânia ao longo de seus 2200 quilômetros.
Don: Outro rio russo de grande porte, porém menor do que o Dnieper (o rio Don percorre 1950 quilômetros do território russo).
Charrua: Arado grande. Fig: Primeiras plantações.
Mujique: Camponês russo.
Idílio: No caso, variam-se as possibilidades (como era comum ao estilo): composição poética de caráter campestre; Sonho, devaneio.
Plangente: Lamentoso, triste, que chora.
Ângelus: Oração rezada ao amanhecer, ao meio-dia e ao pôr-do-sol.

Raul Pompeia (1863 - Angra dos Reis (RJ) - 1895 - Rio de Janeiro)
O caso de Pompeia foi clássico aos que analisam como o poder de um estilo vigente (o Parnasianismo) podia deteriorar o moral de um ser humano por intermédio de críticas covardes. Raul Pompeia, polemista e adepto da poesia sem metro - poemas em prosa, ou seja -, foi um dos poucos poetas Simbolistas a entrar no mundo da política - mas dele saiu-se morto. Sendo um abolicionista e florianista, foi diversas vezes ofendido por Olavo Bilac - o poeta mais agraciado pelo povo e pela imprensa na época -, quase nunca tendo o direito de resposta. E, depois várias humilhações públicas de cunho político e poético, ao ver o seu artigo-resposta no jornal A Notícia ser adiado (julgou o poeta, pelos vários fatos, que o fora recusado), matou-se com um tiro no coração no dia de Natal de 1895.

VULCÃO EXTINTO

E, quel medesimo che si fue acorto
Ch'io dimanandava il mio Duca di lui,
Gridó: Qual i'fui vivo, tal son morto!
Dante - Divina Comédia

Rasga-se a cratera à sombra do píncaro mais alto. Precipícios sem fundo; vai-se-nos a imaginação pelas fragas, a perder-se embaixo, impenetrável noite.
Antes de tombar sobre o vulcão este silêncio pesado, quanta vez tremeram as rochas ao rugido da lava fervente! Tentara o gigante em outros tempos incendiar a amplidão; o século o puniu.
Nada mais ficou dos grandes dias além das escarpas calcinadas, o velho esqueleto informe. Caíram para sempre os castelos de chamas que se erguiam sobre a cratera; extinguiram-se de vez as cenografias satânicas da conflagração; pereceu a memórias das erupções triunfantes!
Tudo agora está findo.
E para os espaços arreganha-se o caminho das lavas, imensa boca torcida na expressão de atroz agonia - brado estrangulado pela morte, apóstrofe muda e terrível, blasfêmia misteriosa da terra.

(De Canções sem Metro, publicado em 1900)

Glossário:
Píncaro: Cume; ponto mais elevado.
Fragas: Penhasco.
Escarpar: Tornar o terreno íngreme; dar declividade a ele.
Informe: Grande, rude, disforme.

Domingos do Nascimento: (1863 - Freguesia do Guaraqueçaba (PR) - 1915 - Curitiba)
Um dos grandes exemplos da poesia de transição do Romantismo e Simbolismo, principalmente se analisarmos o movimento Simbolista como um movimento literário "Pós-Romântico". No caso estético, talvez, essa evidência esteja mais fúlgida principalmente por Domingos do Nascimento não escrever sobre um alicerce estético parnasiano, como grande parte dos Simbolistas que o sucederam.

SEMPRE!

Quando outrora parti, era em plena alvorada,
A estrela-d'alva ardia ao cimo da montanha.
E do planalto olhando, oh surpresa tamanha!
Morria a estrela-d'alva à beira-mar tombada...

E me vendo passar nessa corrida estranha
Da mocidade em flor, me disse a sorte airada:
- Como hás de ser feliz em tua glória, ganha
Nesta vida esconsa e misteriosa estrada?!

Desci: e anos sem fim, sempre visões ignotas
Que almas fazem gemer, como naus entre fráguas
Numa desolação atroz de velas rotas...

Ó taças de cicuta! Ó flores do ópio! Trago-as
De parcéis em parcéis, de ilhotas sobre ilhotas,
Olhos para o alto mar das infinitas mágoas!

(Na publicação Folha Rósea, ano II. 15 de Agosto de 1911)

Glossário:
Cimo: Cume, alto da montanha.
Airado: Aéreo, desvairado, vadio.
Esconsa: Escondida, oculta; que tem desnível.
Ignota: Desconhecido (palavra de uso recorrente no Simbolismo).
Fráguas: Fogueira; Por extensão: Fogo, calor intenso; Amargura.
Cicuta: Planta venenosa.
Parcel: Escolho, recife. Por extensão: estorvo, dificuldade, obstáculo.


Caros leitores do Sacrário das Plangências, a parte II termina, assim como a Parte I, com três bardos com poemas transcritos para o blog. Em alguns casos, focarei mais na biografia (como o de Tibúrcio de Freitas, devoto amigo de Cruz e Sousa, e que nos deixou cartas de simbologia fraternal, mas que, não obstante, nunca chegou a escrever um verso), noutros o foco será totalmente em versos (sejam em sonetos - constantes até agora - ou longos quartetos). Na Parte III, os poemas em prosa aparecerão novamente - e Emiliano Perneta, a grande figura do Simbolismo paranaense, terá espaço para, ao menos, 2 poemas.

Abraços, Cardoso Tardelli

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Um descobrimento dos Simbolistas Brasileiros - Parte I

Caros leitores de o Sacrário das Plangências, há um certo tempo tenho na mente a série de postagens que realizarei durante algumas semanas. O objetivo delas é bem claro: com a transcrição de, pelo menos, um poema dos mais de cem poetas Simbolistas de nosso país, tentar dar lume ao movimento que, talvez, seja o mais desdenhado pelos livros hoje, tenham estes feitios didáticos ou acadêmicos.
Para não haver dúvidas, os vocábulos que poderão causar dúvida terão seus significados esclarecidos.

A fonte principal, como não poderia deixar de ser, é o Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, de Andrade Muricy, talvez o maior conhecedor do Simbolismo que já perambulou pelas brasilianas terras. Usarei, tendo em vista a característica de Panorama do livro de Muricy, as poéticas completas de alguns poetas que tenho para uma visualização maior do que a poesia de cada bardo continha de singular. Postarei um pequeno resumo de quem foi Andrade Muricy, pois creio que seja necessário fazê-lo sendo ele o autor base, mas, para muitos, um desconhecido.

Sobre João Cândido de Andrade Muricy: Nascido em 1895, na cidade de Curitiba. Cursou primeiras letras no Colégio Santos Dumont.
Em 1911, foi nomeado para a Secretaria do Congresso Estadual do Paraná.
Iniciou o curso de Direito na Universidade do Paraná no ano de 1913, colando grau em 1919, no Rio de Janeiro.
Introduzido no contexto e ambiente Simbolista por Nestor Vítor, aderiu ao "Novo-Movimento" ao fundar, em 1927, a revista Festa, junto com Cecília Meireles, Tasso de Oliveira e outros Pós-Simbolistas.
Em 1957, foi eleito Membro da Comissão Arquidiocesana de Música Sacra; neste ano, recebeu do Papa Pio XII a Comenda da Ordem Pro Ecclesia e Pontifice.
Depois de uma inteira vida dedicada ao estudo da música e da literatura, recebeu, em 1973, o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras e a Medalha Cultural "Sílvio Froes", do Instituto de Música da Universidade Católica de Salvador.
Em 1984, faleceu no Rio de Janeiro em 9 de Junho, tendo doado parte de seu acervo bibliográfico ao Museu-Arquivo de Literatura, da Fundação Casa de Rui Barbosa. Os cerca de 10 mil volumes restantes de sua biblioteca foram doados à Fundação Nacional de Curitiba.

POEMAS SIMBOLISTAS:

Rocha Pombo (1857 - Paraná -1933 - Rio de Janeiro)
Esse pioneiro do Simbolismo brasileiro destacou-se pelo romance No Hospício, cujo grau de estranheza nas linhas serve de alicerce para alguns decadentistas do movimento paranaense. No capítulo "A Estátua de Hulme", faz uma descrição alegórica do Simbolismo, terminando desta maneira: (...) - "É Verdade que a tua, meu caro, é a grande Arte; mas a minha é... a Arte que vem!...".

DESERTO DE ALMAS

Dize-me tu, que o dom sacro e fecundo
Tens, a visão do vate formidando
Para sondar as almas, e bem fundo
Os abismos do ser ir perscrutando...

Dize-me: que mistério tão profundo
Tenho no peito a vida me abalando,
Se deixo um pouco lá meu doce mundo
E amplo horizonte venho aqui buscando?

Como é que esta alegria se propaga
Por tantas almas... e minha alma sente
Este silêncio de deserta plaga?

Por que é que em meio à multidão fremente
Passo calado... como numa vaga
Desolação de sombra penitente?

(De Sonetos Paranaenses, 1922)

Glossário:
Vate: Poeta.
Formidando: Que infunde medo, pavoroso.
Plaga: Região.

Benardino Lopes (1859 - Rio Bonito (RJ) - 1916 - Rio de Janeiro)
Somente para dados biográficos, foi um dos mais populares poetas do movimento. Grande amigo de Cruz e Sousa, foi por ele influenciado e, provavelmente, também uma influência inicial no desenvolvimento da poética do Cisne Negro.

ALELUIA, ALELUIA!

Freme em harpas a luz, o éter floresce,
Aleluias no espaço, oiro e o perfume,
Que eu sinto às vezes, morto de ciúme,
Quando a estrela dos Alpes aparece.

Auras do luxo agora chegam, e esse
Fluido de graça que ela em si resume;
O alvo poema da carne vem a lume
Em prefácios de glória e de quermesse.

Qualquer cousa de estranho no ar da rua
Em que rútila e módula flutua
A asa do sonho, criadora e aberta...

Fanfarras da arte, águas do estilo, em bando,
E o clarim da beleza, alto, vibrando...
- Poetas, em fila! Madrigais, alerta!

Glossário:
Rútila: Muito brilhante, resplandescente.
Módula: Melodioso, Harmonioso.
Madrigal: Composição poética com feitio galante, quase sempre dirigido a damas.

MAGNÍFICA

Láctea, da lactescência das opalas,
Alta, radiosa, senhoril e guapa,
Das linhas firmes do seu vulto escapa
O aroma aristocrático das salas.

Flautas, violinos, harpas de oiro, em alas!
Labaredas do olhar, batei-lhe em chapa!
- Vênus, que surge, roto o céu da capa,
Num delírio de sons, luzes e galas!

Simples cousa é mister, simples e pouca,
Para trazer a estrela enamorada
De homens e deuses a cabeça louca:

Quinze jardas de seda bem talhada,
Uma rosa ao decote, árias na boca,
E ela arrebatada ao sol de uma embaixada!

(Ambos sonetos de Brasões, lançado 1895)



Glossário:
Láctea (lactescência): Que tem a cor do leite (Fig: Puro, Branco, Níveo)
Opala: Pedra preciosa de irradiação turva.
Guapa: Elegante, bela.
Mister: Ofício, propósito, incumbência.

Cruz e Sousa (1861 - Desterro (SC) -1898 - Rio de Janeiro)
O maior Simbolista entre nós e, talvez, o mais conhecido. Transcreverei poemas de pouco conhecimento público, fugindo dos ótimos e clássicos "Acrobata da Dor", "Antífona" e "Violões que Choram".

ASAS ABERTAS

As asas da minh'alma estão abertas!
Podes te agasalhar no meu Carinho,
Abrigar-te de frios no meu ninho
Com as tuas asas trêmulas, incertas.

Tu'alma lembra vastidões desertas
Onde tudo é gelado e é só espinho.
Mas na minh'alma encontrarás o Vinho
E as graças todas do Conforto certas.

Vem! Há em mim o eterno Amor imenso
Que vai tudo florindo e fecundando
E sobe aos céus como um sagrado incenso.

Eis a minh'alma, as asas palpitando,
Como a saudade de agitado lenço
O segredo dos longes procurando...

RENASCIMENTO*

A Alma não fica inteiramente morta!
Vagas Ressurreições do sentimento
Abrem, já, devagar, porta por porta,
Os palácios reais do Encantamento!

Morrer! Findar! Desfalecer! Que importa
Para o secreto e fundo movimento
Que a alma transporta, sublimiza e exorta
Ao grande Bem do grande Pensamento!

Chamas novas e belas vão raiando,
Vão se acendendo os límpidos altares
E as almas vão sorrindo e vão orando...

E pela curva dos longínquos ares
Ei-las que vêm, como o imprevisto bando
Dos albatrozes dos estranhos mares...

*No terceto final, há uma clara influência da imagem do poema "l'Albatros" (O Albatroz), de Baudelaire, no qual o poeta francês faz a analogia do pássaro com os poetas que ficam presos no mundo graças aos humanos, mesmo que possam muito alto voar. A referência, no soneto de Cruz e Sousa, é feita pela liberdade já obtida numa morte em que "A Alma não fica inteiramente morta".

SORRISO INTERIOR*

O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo este brasão augusto
Do grande amor, da grande fé tranquila.

Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem ânsias e sem custo...
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe esta glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser transforma tudo em flores...
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!

(Todos poemas dos Últimos Sonetos, de 1905)

*Último poema escrito por Cruz e Sousa. Segundo Tasso de Oliveira, "talvez um dos mais belos do idioma".

Glossário:
Augusto: Magnífico, venerável.
Eflúvio: Aroma, perfume; emanação de feitio invisível, mas sempre olfatória.

Caros leitores do Sacrário das Plangências, foram somente três autores com que trabalhei - mas um deles era, tão somente, o maior. Pretendo intercalar outras postagens, com outras temáticas, ao lado dessa amostragem do nosso Simbolismo, que tão desvalorizado é.

Abraços, Cardoso Tardelli

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Augusto dos Anjos e o Simbolismo - A Evidência por meio de Cruz e Sousa

Caros leitores de o Sacrário das Plangências, depois de um período sem postagens, volto com uma temática que antes já havia sido tratada de forma relativamente superficial: as evidências que colocam o paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914) no movimento Simbolista, com uma influência legítima e que não retira de Augusto a sua genialidade como poeta e que tampouco diminui o valor de sua imensa repercussão no Brasil, algo que, para um poeta de linguagem como a dele, é fato raro.
Por meio de poemas do grande representante da primeira-geração do Simbolismo brasileiro, Cruz e Sousa (1861-1898), vamos compreender com qual profundidade o movimento da sugestividade influenciou Augusto dos Anjos.

(Foto: Cruz e Sousa)

Andrade Muricy (1895-1984), em seu Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, rejeitou a ideia, num momento primeiro, de colocar o poeta paraibano em seu livro. Mas ao analisar a obra e, principalmente, ao ler a defesa de Péricles Eugênio da Silva Ramos (1919-1922), na qual defendia que o poeta do "Pau d'Arco" não poderia ser colocado em nenhum movimento sem ser o Simbolista, não hesitou em pôr Augusto em sua obra e, para evitar conflitos com aqueles que defendem a ausência de Augusto em qualquer que seja o Movimento, toma como base uma magnífica comparação da poética de Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa além de uma análise social e literária do momento em que o poeta cientificista começava a criar a personalidade de seu estro.


(Foto: Augusto dos Anjos)

Antes da comparação de poemas, Muricy defende que "A originalidade de todos os elementos expressionais nunca foi encontrada em nenhum poeta. Augusto dos Anjos veio confirmar, com a forte originalidade que afirmou, a legitimidade do Simbolismo entre nós, e a sua fecundidade verdadeira, que não era nem tirania, nem abafamento, a esterilização num formalismo esgotado, mas o impulso de vida, gerações afora". Quando Muricy escreveu o Panorama, creio que o argumento que colocarei adiante significava um apontar para uma melhora das análises literárias, mas, no adentrar do Século XXI, vemos que o contrário do que ele põe otimista, ocorre:

"Já se está ultrapassando, entre nós, o horror às aproximações, às comparações, à pesquisa de filiações e do entrecruzamento de influências tão fecundas na Literatura, e aliás em todas as demais Artes. Esse estudo de genética literária restitui à Literatura a sua verdadeira universalidade humanística, retirando-a dos exclusivos critérios nacionalista e individualista, e da obsessão da "originalidade", tão esterilizadora". E é nessa "obsessão de originalidade" em que se fixam os defensores do alheamento de Augusto para com o movimento Simbolista, alegando brumosos elementos de um pré-Modernismo (se assim o for, mais da metade do Simbolismo foi pré-Modernista por serem ousados estéticamente muito antes dos "Modernos; por exemplo, sonetos em versos brancos, versos livres com a intenção de formar uma forma geométrica ou artística - e por terem, em público, feito guerra poética contra a postura Parnasiana - mérito dado somente aos participantes da semana de 1922 e de comoções subsequentes).

Nos tempos de início de maturidade de Augusto, as obras de Baudelaire (1821-1867) já eram amplamente conhecidas no Brasil, mesmo não tendo um fecundo reconhecimento entre as literaturas dominantes. Cruz e Sousa já havia morrido há um tempo e suas obras derradeiras já haviam sido publicados (principalmente o essencial Últimos Sonetos, publicado em 1905). Para qualquer aspirante a poeta, uma leitura desses exemplares era obrigatória. Antes de pontuar algumas semelhanças evidentes da poética cruziana para com a augustina, a leitura de Simbolistas feitas por Augusto são evidentes - assim como a consequente influência - quando se notam as maiúsculas individualizadoras, as epígrafes contendo versos de poetas do movimento (incluindo o Dante Negro) e evidentes temáticas neo-românticas, de forma alguma tratadas de uma maneira Parnasiana. Deixar-se-á bem claro que as influências que Augusto tinha não excluem a singularidade no tratamento das temáticas que Augusto moldava.

Os poemas que transcreverei a seguir são, como Andrade Muricy escreveu, "tipicamente de Augusto dos Anjos", mas que não negam a fonte legítima que é a poesia cruziana.

ETERNA MÁGOA

O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quando mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!"

Pois vamos ao exemplo de um dos clássicos sonetos de Cruz e Sousa para a comparação, publicado em seus Últimos Sonetos, além de um pequeno trecho de "Ironia dos Vermes", publicado em Faróis, de 1900.

TRIUNFO SUPREMO


Quem anda pelas lágrimas perdido,

Sonâmbulo dos trágicos flagelos,

É quem deixou para sempre esquecido

O mundo e os fúteis ouropéis mais belos!


É quem ficou no mundo redimido,

Expurgado dos vícios mais singelos

E disse a tudo o adeus indefinido

E desprendeu-se dos carnais anelos!


É quem entrou por todas as batalhas

As mãos e os pés e o flanco ensanguentado,

Amortalhado em todas as mortalhas.


Quem florestas e mares foi rasgando

E entre raios, pedradas e metralhas,

Ficou gemendo mas ficou sonhando!


E os pequenos trechos de "Ironia dos Vermes":

(...)

"Ah! tudo, tudo proclamar parece
Que hás de afinal apodrecer com pompa.

(...)

Para que os vermes, pouco escrupulosos,
Não te devorem com plebeia fúria"
(...)

................... E cândida princesa:
És igual a uma simples camponesa
Nos apodrecimentos da Matéria!"

A temática funesta-irônica foi tradada de maneira muito mais cientificista por Augusto dos Anjos do que por Cruz e Sousa, porém, nos poemas e trechos mostrados, é inegável a influência temática, principalmente nas questões transformistas e naturalistas (que, por muitas vezes, misturavam-se, em certo embate, com as questões transcendentais), normais aos dois poetas.

Mas, talvez, um dos exemplos mais interessantes a se dar é sobre as semelhanças do soneto "No Egito", de Cruz e Sousa, e do poema "Uma Noite no Cairo", de Augusto dos Anjos.

NO EGITO (Cruz e Sousa - O Livro Derradeiro)


Sob os ardentes sóis do fulvo Egito

De areia estuosa, de candente argila,

Dos sonhos da alma o turbilhão desfila,

Abre as asas no páramo infinito.


O Egito é sempre o amigo, o velho rito

Onde um mistério singular se asila

E onde, talvez mais calma, mais tranquila

A alma descansa do sofrer prescrito.


Sobre as ruínas d’ouro do passado,

No céu cavo, remoto, ermo e sagrado,

Torva morte espectral pairou ufana...


E no aspecto de tudo em torno, em tudo,

Árido, pétreo, silencioso, mudo,

Parece morta a própria dor humana!

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UMA NOITE NO CAIRO (Augusto dos Anjos - Eu)

Noite no Egito. O céu claro e profundo
Fulgura. A rua é triste. A Lua cheia
Está sinistra, e sobre a paz do mundo
A alma dos Faraós anda e vagueia.

Os mastins negros vão ladrando a lua...
O Cairo é de uma formosura arcaica.
No ângulo mais recôndito da rua
Passa cantando uma mulher hebraica.

O Egito é sempre assim quando anoitece!
Às vezes, das pirâmides o quedo
E atro perfil, exposto ao luar, parece
Uma sombria interjeição de medo!

Como um contraste àqueles misereres,
Num quiosque em festa alegre turba grita,
E dentro dançam homens e mulheres
Numa aglomeração cosmopolita.

Tonto do vinho, um saltimbanco da Ásia,
Convulso e roto, no apogeu da faria,
Executando evoluções de razzia
Solta um brado epilético de injúria!

Em derredor duma ampla mesa preta
— Última nota do conúbio infando -
Vêem-se dez jogadores de roleta
Fumando, discutindo, conversando.

Resplandece a celeste superfície.
Dorme soturna a natureza sábia...
Embaixo, na mais próxima planície,
Pasta um cavalo esplêndido da Arábia.

Vaga no espaço um silfo solitário.
Troam kinnors! Depois tudo é tranquilo...
Apenas como um velho estradivário,
Soluça toda a noite a água do Nilo!

Para citar as semelhanças, entre os dois poemas, que Andrade Muricy pontuou: Em "No Egito", no primeiro verso do segundo quarteto, Cruz e Sousa escreve:

"O Egito é sempre o antigo, o velho rito".


Já no terceiro quarteto de "Uma Noite no Cairo, em seu primeiro verso, Augusto dos Anjos escreve:

"O Egito é sempre assim quando anoitece!"

Segundo A. Muricy, o tema foi retomado claramente por Augusto dos Anjos, por mais que, em certos trechos - principalmente no terceto e na quadra final dos respectivos poemas - de nada se pareçam. O que defende Muricy é algo fulgente: "Em ambos (...), o movimento interiorizado, num pitoresco no outro, é de evidente analogia, e a atmosfera de um paralelismo flagrante: uma cantante tranquilidade no poema, e um silêncio abismal no poema".

O poema que transcreverei agora é relativamente pouco conhecido - inclusive não fora citado por Andrade Muricy em nenhuma edição de seu Panorama - mas hoje já é colocado por editoras junto as Outras Poesias, reunião de poemas que compunham a obra completa de Augusto ao lado do Eu, lançado em 1912. Creio que é um dos mais clarividentes casos de influências de Verlaine (1844-1896) ou até mesmo de seu maior leitor no Brasil (não maior intérprete, pois são coisas opostas), que foi Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), lembrando que o poeta mineiro, mesmo falecido depois de Augusto, já gozava de grande fama no círculo Simbolista brasileiro - sendo um dos únicos a ser poupado de fortes críticas de José Veríssimo (1857-1916), um "inimigo dos Símbolos", como era chamado pelos adeptos do movimento.


NOTURNO

Chove. Lá fora os lampiões escuros

Semelham monjas a morrer... Os ventos,

Desencadeados, vão bater, violentos,

De encontro às torres e de encontro aos muros.


Saio de casa. Os passos mal seguros

Trêmulo movo, mas meus movimentos

Susto, diante do vulto dos conventos,

Negro, ameaçando os séculos futuros!


De São Francisco no plangente bronze

Em badaladas compassadas onze

Horas soaram... Surge agora a Lua.


E eu sonho erguer-me aos páramos etéreos

Enquanto a chuva cai nos cemitérios

E o vento apaga os lampiões da rua!


Toda temática do poema é Simbolista. Monjas, conventos, torres (sinais de isolamento, mesmo que perturbadores), além de um aspecto extremamente tristonho e religioso (não nos esqueçamos que Augusto dos Anjos era um grande católico, assim como muitos do movimento). A movimentação errante da persona-lírica, que vai solitária ao encontro do seu Sonho, mas com um terceto final totalmente sugestivo, evoca-nos os melhores momentos do clássico poema "Serenada" de Alphonsus de Guimaraens, por exemplo.

Augusto dos Anjos foi um poeta singular dentro da literatura brasileira, mas o argumento de que ele não era nem Parnasiano nem Simbolista é de uma falácia total e, inclusive, de uma injustiça com a erudição do poeta da Paraíba. As influências e o caminho que ele seguiu não retira, de forma alguma, a singela assinatura de Augusto em nossas letras. Como Andrade Muricy escreveu, "Augusto dos Anjos seria o grande poema que foi em qualquer época literária. Tal, porém, como se cristalizou o seu estro, e precisamente daquele modo, só o pode ser porque passou pela atmosfera do Simbolismo".

Abraços, Cardoso Tardelli