quarta-feira, 27 de julho de 2011

Cogitações sobre o Desprestígio da Poesia


Estimados leitores de o Sacrário das Plangências, nesta postagem discorrerei sobre alguns aspectos que vêm-me chamando a atenção em relação ao tratamento do gênero Poesia. Que este tem seus seguidores fiéis não há dúvida, mas que passa esse Ofício por crises internas (leia-se: temática e estrutural) e externas (a relação do leitor para com as obras, sejam antigas ou novas, além do esclarecimento do que é, de fato, a Poesia) são fatos inexoráveis e incômodos.

Recentemente, foi realizada a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), na qual houve a divulgação das inscrições para a Revista Granta, da Universidade de Cambridge, para uma edição que nomeará os Melhores Jovens Escritores Brasileiros, numa tentativa de jogar a lume os tendenciadores da nossa Nova-Literatura. As restrições para que o autor concorra ao prêmio, que é um "selo de qualidade", são: ter, ao menos, um texto publicado em livro e ter como gêneros enviados Contos ou Romances.
Vendo o histórico atual da revista, há tempos ela vem selecionando somente romancistas e contistas. Mas faço uma pergunta franca: como estampar numa capa a ostentação de que naquela coletânea há os vinte melhores escritores de um país, no anseio de delinear o futuro de uma literatura, se o gênero Poesia é excluído da seleção?
Inclusive, se formos perscrutar a proposta da Granta, é impossível chegar a uma padronização de Literatura, por mais relativa que esta seja, sem pôr todos os Gêneros Literários em prática. O tempo, por consequência, mostrará qual é a corrente de ideias mais forte e que influenciará do verso ao teatro.

Esse ato da Granta, que soou ao ouvido da maioria como uma brisa matutina, tamanha a naturalidade com que receberam a notícia, pode ser a consequência de vários erros de "relacionamento", posto de uma maneira simples, do público para com a Poesia. Ora, esta é vista em qualquer lugar, lugares nos quais nunca imaginou estar: letras de música, fotografias, filmes e entre outros meios de arte.
Não me refiro aqui às fotografias que possuem trechos de poemas, ou filmes que retratam vidas de poetas, com consequentes declamações, mas de elogios como "Essa fotografia é um poema", celebração também utilizada para filmes. O "poema" deixa de ser gênero para tornar-se adjetivo, excluindo o ofício do poeta de transformar uma paisagem (que pode ser a da fotografia referida) em estrofes lancinantes. No caso de filmes, cujos alicerces no teatro e nos romances não precisa ser exposto, pois estes vêm da lógica, o adjetivo poema subjetiva o "belo", sendo que nem toda obra em verso é bela, ou feita para dar tal impressão. Vemos, nos casos citados, por incrível que pareça, uma necessidade vívida de Poesia, mesmo que ela apareça em outra forma, mas contenha "a pompa" de seu nome.

Talvez o caso mais incômodo seja o das letras de música. Após o movimento Modernista, em 1922, e dos constantes cultos ao verso-livre, cujo nome é bem questionável se o poeta não for bom o bastante para se libertar da visão primeira e concreta que nos inunda por toda a vida, tornou-se comum denominar "Poesia" as letras de compositores. Não à toa, muitas vezes vemos biografias de figuras de nossa música com títulos como Vida, Música e Poesia de...; inegavelmente, há algumas que têm trechos mais inspirados do que os menos inspirados trechos dos nosso célebres, mas a desassociação da Melodia e da Letra torna-se impossível após ouvido o trecho, mesmo porque a letra ganhou pompa com o carregamento melódico e vocal. Além do mais, muito mais sacrificante do que a métrica - se é esta uma ceifadora para os grandes poetas - é adaptar uma letra a um andamento harmonioso.

Se o público enxerga o gênero, mesmo que diluto num adjetivo-subjetivo, em vários outros tipos de arte, por que ele procuraria a Poesia no incorrupto grau em que ela é composta? Essa ação, nota-se, ganha maior força nestes tempos de "lei do menor esforço".

Muitas pessoas cogitam a possibilidade de que a Poesia é um retrato das altas classes intelectuais - e assim sempre o foi. O Modernismo quebrou com qualquer perspectiva de exclusão do gênero num grupo acadêmico, pois fez do ofício poético algo como um grande compêndio de vulgaridades, mas tornando a estética, às vezes também a temática, muito vulgares também. Inclusive sobre a questão Acadêmica, vê-se que mesmo na Academia, suposto reduto de conhecimento, o desdém ao Gênero retumba.


(Na foto: Goethe)

Indo para além do aspecto das Artes, irei cogitar algo mais remoto, quase inconsciente. A Poesia, por muito tempo, caminhou ao lado da Filosofia e da mais alta elevação de pensamento, tanto que, por muitas vezes, os poetas escreviam versos, prosa poética - fazendo desta um manto de teorizações para a Poética e para a vida - até para a prosa clássica, mesmo que não abandonassem o estilo poético de escrita, ou seja, repleto de inversões de sentenças, sendo que estas eram feitas para desaguar num ritmo não comum em prosas. Esse estilo de vate ganhou intensidade na época do Romantismo e Simbolismo, tendo em Goethe (1749-1832) um grande exemplo, passando também por Edgar Allan Poe (1809-1849), Baudelaire (1821-1867) e, no Brasil, como exemplo, Cruz e Sousa (1861-1898). Todos estes, sendo que ainda excluí muitos, tinham como a Arte e o Conhecimento como afãs que os prendiam ao chão mundano.


Além da arte, do conhecimento, os poetas referidos tinham ideais de perpetuidade do pensamento terreno. Cruz e Sousa, em "Post-Mortem", deixa o exemplo claro disso:

POST-MORTEM

(...)

Mas os teus Sonhos e Visões e Poemas
Pelo alto ficarão de eras supremas
Nos relevos do Sol eternizados!


A negação da matéria, sendo esta efêmera para cada um de nós, foi tema corriqueiro nos tratamentos de perpetuidade das ideias. Acima de tudo, sempre se teve a percepção de que, mesmo passada a vida do poeta, o maior legado que ele poderia deixar seria seus ideais e pensamentos. Uma das grandes maneiras de fazê-lo era por meio da Poesia. O inegável é que a sociedade hoje tem a ideia de legado como algo Material, além da constante ideia juvenil de que nada adianta o conhecimento se a morte é o abrigo derradeiro de todos nós. Notem que a visualização do legado altivo, que é a perpetuidade de um ser por intermédio de suas ideias, é excluída na premissa materialista de que não há ideia que vive sem o pensador ao lado, pois a predominância da ânsia pela fama faz criou a retórica do "Que adianta ser eterno se não há o deleite da notoriedade?". Findada a força de perpetuidade da ideia, esta deixa de ser motivo interesse aos que têm domínio das letras, preferindo a efemeridade dos best-sellers atuais a um tateamento do ser, que por gerações diversas bramiria.

Voltamos, então, à questão da revista Granta. Está sendo ela displicente diante de uma evidente decadência do tratamento feito ao gênero Poesia ou somente sendo um espelho da sociedade? Mas como uma revista de uma das mais importantes Universidades do mundo, e sendo na mesma pátria em que nasceram Byron (1788-1824), Keats (1795-1821), Percy B. Shelley (1792-1822), entre outros grandes, não estariam sendo os editores gigantescos espectros apoiados na confortável cegueira popular diante de uma história de eloquência e erudição?

(Na foto: Cruz e Sousa)

Como o título desta postagem deixa claro, são cogitações - mas todas sobre um fato: a Poesia teve o prestígio abalado a partir do momento em que o público se esqueceu, ou deixou de ter a percepção, de que ele também é um personagem de cada poema, e por esse ser alheio à obra e à sua alma, procura preencher com outros personagens a sua amplidão vazia por meio de romances de fácil entendimento ou, como já dito, diluindo a necessidade de Poesia em outras artes, na transfiguração do gênero para o adjetivo.

Não há outro meio de reverter essa situação se não for por intermédio dos poetas, que estão, ao mesmo tempo unidos na preocupação da valorização de sua obra e do gênero, mas dissipados por consequência do vácuo que é o esquecimento de seus alicerces. Para o público, muito além de "Nova-Literatura Brasileira", se o caso é poesia, eles querem observar poetas que se valorizam e que têm do verso como Ofício, independentemente das vendas. Acima de tudo, creio que os poetas têm de ser poetas e escrever para o legado, "desdenhando de toda a recompensa", como escreveu Cruz e Sousa, um dos mais injustiçados poetas brasileiros.

Abraços, Cardoso Tardelli

terça-feira, 19 de julho de 2011

Casimiro de Abreu - Um Romântico de Transição



Caros leitores de o Sacrário das Plangências, esta é uma postagem que visa demonstrar a importância de Casimiro de Abreu (1839-1860) para além de seus clássicos e inolvidáveis poemas presentes no seu único livro As Primaveras, de 1859. O papel de Casimiro nas letras brasileiras é fulgente, mas o seu papel de influenciado por eternos, contemporâneo de personalidades literárias como Machado de Assis (1839-1860) e Castro Alves (1847-1871), e de influente literato até o abalo de sua imagem realizado pelos parnasianistas. E, diante do lugar em que se encaixa Casimiro de Abreu no nosso Romantismo, colocá-lo como um poeta de transição das fases do movimento.

Para dados bibliográficos, a Obra Completa de Casimiro de Abreu utilizada para a postagem é organizada e comentada por Mário Alves de Oliveira, da editora G.Ermakoff, lançado no ano de 2010, ano em que se completa 150 anos da morte do poeta fluminense.

Quanto ao Casimiro influenciado, qual todo Romântico, tinha ele o alicerce cultural na cultura francesa, inglesa e portuguesa, país em que viveu durante certo tempo. Nota-se isso nas várias citações observadas nas Primaveras, que vão de Victor Hugo (1802-1885) até do português Almeida Garrett (1799-1854), a quem Casimiro dedicou um poema, que é encontrado somente em sua obra completa.
O poeta fluminense, de certa forma, estava no meio-período da segunda geração Romântica, tendo esta já nos dado grandes poetas, como Álvares de Azevedo (1831-1852) e Junqueira Freire (1832-1855), tendo o poeta de "Meus Oito Anos" natural influência dos seus antecessores, principalmente do primeiro. Mas sendo carioca e frequentando as livrarias fluminenses, Casimiro de Abreu tinha contato com obras, e com as personalidades, de outras gerações românticas, como é o caso de seu contato, mesmo que efêmero, com Gonçalves Dias (1823-1864), poeta que influenciou de maneira grandiosa a obra de Casimiro.


Para falar do feitio influenciado, soando até como uma "homenagem", talvez um poema, que não é encontrado nas Primaveras seja o exemplo mais eloquente disso. Transcrevo-o por inteiro, pois pouco conhecida é esta obra:

NA TABERNA

Às vezes quando eu cismo no passado,
Nos meus dias de crença e de esperança
Pergunto a Deus: "-De que me serve a vida?
Melhor me fora falecer criança! -"

A minha mocidade passa estéril,
Já morre a primavera e chega o estio;
Ai de mim! sou cadáver do que fora
- Crânio sem fogo, coração vazio!

Vivi? Passei na terra como um eco.
Uma vez, uma só, no meu caminho,
A virgem pensativa da minh'alma
Veio junto de mim falar baixinho!

Era doce essa voz!... Morreu? - Quem sabe?
Suspirava de amor? - Não sei... que importa?
Murchas as flores de um futuro rico
Lamento agora a mocidade morta!

Pálida sombra, nas caladas horas
Mudo divago nos jardins queridos
Da minha fantasia - hoje desertos -
Mas em vez de canções ouço gemidos.

Morreste, coração? oh! foi bem cedo,
Pobre louco de amor, a morte tua!
Nunca mais soltarás os teus suspiros
Nessas noites de abril, a sós co'a lua.

As minhas ilusões foram caindo
Como os frutos do tronco que se esgalha,
Agora solitário tenho frio,
E tremendo me embrulho na mortalha.

Ouço um canto, mas triste, mas pausado,
Como um convite para pátria nova...
Tateio a escuridão, caminho... caio...
Na pedra tropecei da minha cova!

Tão funda a sepultura!... vou descendo...
A aurora nasce... vou dormir no leito,
Depois encontro uma mulher deitada,
Vestidos brancos - uma cruz ao peito.

Arreda-te, mulher! filha do vício
Erraste o teu caminho, é longe a estrada,
Diz: por que nesta noite de tormenta
Na minha cama vim te achar deitada?

- Não me toques - disse ela despertando,
Tremo de frio... há muita neve fora,
Nas trevas procurei este refúgio,
Oh! não me mandes eu te peço, embora -

Mas a cama é pra mim, pois tu não sabes
Que esses leito, mulher, é meu jazigo?
- Eu sei, mas tenho frio, não te zangues...
A cama é larga - vem dormir comigo...

..................................................................

Sim, dormiremos, minha branca virgem,
Dá-me o teu lábio, chega-me o teu seio...
Queima-me o sangue nos teus beijos mornos,
- Amor e morte - nos teus olhos leio.

Tremes! Soluças!

.................................................................

Que diabo escrevi? - Estou sonhando,
Ou vazia a botelha quer reforma?
Quando eu bebo conhaque fico alegre,
Gaguejo os salmos e estropio a Norma!

Quanta asneira que eu disse! Prantos, beijos,
Vozes rouquenhas de alaúdes em lutos!
- Oh lá! Roberto - maldito dorminhoco,
Traz mais vinho e vai buscar charutos!

.............................................................

Nesse poema, desde o título até os desdobramentos do personagem, assim como suas relações perante a sua própria história, lembram a Noite na Taverna (1855), de Álvares de Azevedo. Casimiro de Abreu tinha grande sensibilidade musical em seus poemas, então a quebra de ritmo, de métrica e de rima pode parecer estranha a quem está acostumado com seus versos extremamente musicais. Mas, como a persona-lírica justificou, quando há o uso do conhaque (imagem extremamente usada no Romantismo, muito também por Álvares de Azevedo), além dos delírios que, por mais lutuosos possam ser, crescem num coração que fica alegre com a bebida, há também a quebra das normas de um poema daquela época (no trecho gaguejo o salmo e estropio a Norma).

Colocada em evidência a face influenciada de Casimiro, e provavelmente desconhecida, comentarei da influência exercida pela poética do poeta das Primaveras. É inevitável discutir Machado de Assis quando tratamos dos influenciados por Casimiro de Abreu. Machado foi amigo de Casimiro e pelo cantor da infância nunca negou a admiração tanto pessoal quanto artística. Talvez o retrato mais clarividente dessa admiração esteja no conto "Questão de Vaidade", publicado em 1865, quando já finado estava Casimiro, e em que há uma descrição de uma valsa entre os personagens, interrompida pelo diálogo de Machado e Casimiro de Abreu:

(...)
- Casimiro, objetava eu, para dois corações que se amam, a multidão não é isolamento? E quando um par se atira à sala, aos primeiros compassos de uma valsa, não lhe desaparece tudo, não ficam eles, sós, ermos, confundidos?
Casimiro adorava a valsa. Todos conhecem a bela poesia das Primaveras que traz este título.
(...)

E, de fato, o poema "A Valsa" é um dos mais célebres de Casimiro. Talvez, ao lado de seus "Os meus Oito Anos", figure entre os poemas Românticos de maior popularidade nas nossas letras. A presença de Casimiro de Abreu em todo movimento Romântico posterior a sua morte manteve-se intacta. Fagundes Varela (1841-1875), o último grande poeta da segunda geração, se essa divisão pode ser aceita nos moldes que é ensinada, não tinha uma poesia à lá Casimiro, mas o admirava. Neste poema, vemos uma amostra disso:

ELEGIA

(...)

Era o tímido Abreu, vítima imbele
Do prosaísmo estólido da vida,
Coração de donzela e de criança,
Alma sentida como a rola aflita!
(...)

É evidenciado no trecho o conhecimento de Varela sobre a vida de Casimiro de Abreu. Os problemas com o pai e com uma sociedade da qual só tirava desgostos estando fora do meio literário, jogavam Casimiro de Abreu numa gangorra sentimental, podendo ele louvar a vida ou simplesmente avisar um amigo, por intermédio de uma carta, para que não se assustasse "caso recebesse a notícia de que havia se suicidado".

Um outro Romântico que é muito mais celebrado do que o poeta carioca, Castro Alves, que é considerado da terceira geração, tem em sua obra o quase olvidado Espumas Flutuantes, de 1870, cujos traços de rebelião social eram muito semelhantes aos de Casimiro de Abreu e da fase derradeira de Fagundes Varela, nunca negou a sua admiração ao poeta fluminense. Certa vez, chegou a falar dos poetas que admirava: "Dos antigos - Casimiro de Abreu. Dos contemporâneos - Fagundes Varela" (A Vida Literária durante o Romantismo. Ubiratan Machado; Tinta Negra, 2010). Como eu já havia comentado em outros tópicos, Casimiro de Abreu tinha um feitio social em sua poesia, mesmo que este aparecesse nas Primaveras de relance. Sua obra completa nos dá uma ampla visão de como Castro Alves, em seus poemas de temáticas sociais, intensificou o brado de Casimiro de Abreu.

Casimiro de Abreu poderia ser um poeta de transição-fluida da primeira geração para a terceira. Ao ler a obra do poeta, fica clara a impressão de que os arrebatamentos dos versos de Álvares de Azevedo e de Junqueira Freire foram como gritos grandiosos, cessados pelo findar das vidas que os plangiam. Mesmo que o viver de Casimiro tenha sido curto, sempre foi ele um poeta mais "leve" tematicamente do que os dois citados, sendo singelo dentro do movimento, pois tinha em sua poética elementos de Gonçalves Dias, dos ultra-românticos e dos condoreiros, que sequer pensavam em existir quando As Primaveras estava sendo escrita. Casimiro de Abreu é um poeta de Transição-fluida porque, com ele, há só um Romantismo - o Brasileiro -, não denominadamente três.

De um todo, o poeta fluminense hoje é lembrado pelos versos de "Meus Oito Anos" e pela musicalidade de "A Valsa", como já havia sido exposto. Mas o aspecto de transitoriedade na poesia dele não é tratado como deveria ser. Ora, Casimiro de Abreu era um poeta situado entre a primeira geração e a terceira, mas que mantinha contato com poetas da primeira geração - e os admirava -, além de ser admirado por poetas do momento derradeiro da segunda fase e da terceira geração do Romantismo. Colocado isso, a imagem do poeta fluminense deve vir qual a de um cortejo de conteúdos: sejam eles anteriores a Casimiro ou posteriores... pois o ser inolvidável abrasa o seu vulto em toda alma que fulge.

Abraços, Cardoso Tardelli

quarta-feira, 6 de julho de 2011

A Deturpação Biográfica e sua Consequência na Leitura da Obra

Caros leitores de o Sacrário das Plangências, o tema abordado nesta postagem, de certa forma, já fora tocado no início da existência do blog, mas com a abordagem, tão somente, do Romântico brasileiro Álvares de Azevedo (1831-1852), cujo mito ambíguo de "casto e doentio poeta", mas que, não obstante, participava das reuniões da Sociedade Epicureia (nas quais os participantes proclamavam-se personagens de obras de Byron (1788-1824) e praticavam o que a cidade de São Paulo da metade do Século XIX não permitia: boemia e fantasias de volúpia), atingiu em cheio a interpretação de sua obra, deixando a ilusão voar livremente sobre as leituras de suas obras. Porém, Azevedo não será o alicerce para exemplificar como a deturpação de uma biografia pode atingir a leitura: o foco deste tópico será Camilo Pessanha (1867-1926).

O português Camilo Pessanha, autor de Clepsidra (1920), teve, durante muito tempo, suas reputações morais, profissionais e poéticas questionadas. Quando, em 1894, desembarcou em Macau, pequena região localizada na costa da China, dominada pelos lusitanos desde 1557, mas que teve a ocupação reconhecida pelos chineses somente em 1887 (Macau foi reintegrada ao domínio asiático em 1999), seu nome já era comentado nos Cafés portugueses, tendo um pequeno renome por alguns poemas esparsos. Porém, ao contrário do que a crítica insistiu durante um grande tempo, grande parte da obra de Pessanha foi feita na China, e não na companhia de lusitanos em sua terra de berço, por esse motivo o seu nome era somente perpassado nas discussões literárias antes de sua viagem.

(Na foto: Camilo Pessanha)

O poeta de Clepsidra recebeu, após a sua morte em 1926, mesmo com a exaltação de sua poesia realizada por Fernando Pessoa (1888-1935) e por outros grandes poetas portugueses, críticas ferozes feitas por lusitanos que desconheciam os fatos de Macau, mas que bem conheciam as asas que um factoide podia atingir quando lançado ao ar.
Na tentativa insistente de diminuir Pessanha como pessoa, disse um de seus biógrafos que, em seu enterro, poucos amigos se encontravam, mas que mesmo estes não prantearam sua morte. Porém, segundo apurou Paulo Franchetti, que organizou a atual edição de Clepsidra, lançada pela Ateliê Editorial (*ver final da postagem), Camilo Pessanha foi enterrado como qualquer homem público de Macau da época, "com muitas autoridades presentes", grande quantidade de pessoas, além das menções honrosas em jornais do local.

Pessanha ganhou fama de um andarilho nu, de barba suja e de professor mal educado, ríspido e sujo. Franchetti, que pesquisou por mais de dez anos a obra e vida do poeta, teve a sorte de encontrar, em 1989, a única aluna de Pessanha na época ainda viva, que negou de maneira veemente as acusações feitas pelos críticos, alegando que o poeta sempre se vestia de maneira elegante, com os cuidados requeridos aos cabelos e barba (contrariando a fama de ter piolhos); além do mais, Dona Henriqueta, a aluna em questão, disse a Franchetti que o poeta era um professor de história magnífico, o que pode ser comprovado nos papéis de planejamento das aulas que Camilo Pessanha escrevia.

Segundo Franchetti, o poeta era, acima de tudo, um Dândi, que vestia-se rigidamente bem em qualquer ocasião, independentemente do traje convir ao local e ocasião, além de ter, em sua própria personalidade, uma ornamentação da retórica e das ações, algo que é típico dos Dândis, que magnetizavam, consequentemente, a atenção e inveja dos que não as tinham.

Camilo Pessanha traduziu muitos textos e poemas Chineses (hoje perdidos quase em sua maioria, sendo somente encontrados os que eram publicados em jornais), mas foi, pelos primeiros biógrafos, considerado um péssimo tradutor e uma pessoa que não dominava a língua chinesa (algo que, provavelmente, nem os biógrafos dominavam). Pessanha tinha um conhecimento bom da língua chinesa, tal como de sua cultura, mas não expandindo a um conhecimento esplêndido - mas nunca diminuindo, porém, o mérito de levar a lume os textos chineses aos leitores de língua portuguesa.

Não podemos esquecer de que Clepsidra é um livro Simbolista, e como tal, sofreu muitas críticas e comparações com o movimento francês, na tentativa da anulação da singularidade de cada poeta. Ou seja, como já o havia dito, mesmo com a corrente fama de Pessanha nos Cafés portugueses, algo que só aumentaria após o lançamento de sua obra, a Clepsidra foi embrumada pela fantasia do homem sem escrúpulos, sujo, mesmo dotado de certo gênio de poeta e de uma mente de memória magnífica (revela-se aí o mito de que Pessanha nunca anotava seus poemas em papel, pois os decorava na mente), formando uma imagem dum desdenhoso com o seu Ofício Poético, pois muitos de seus textos se perderam na sua "retenção mental", consequente da repulsa que a imagem da pessoa, que como vimos, foi moldada em cima de ilusões, passava em primeiro lugar. Questiono os leitores de o Sacrário das Plangências se um autor que fez história com um livro de somente quarenta e oito poemas poderia ser tão incompetente assim. Além do mais, poemas como este soneto, o qual já considero um dos meus prediletos do Simbolismo Português:

I

Tenho sonhos cruéis: n'alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente.

Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-m'o coração dum véu escuro!

Porque a dor, esta falta d'harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d'agora,

Sem ela o coração é quase nada:
- Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.

Evidentemente, muito há ainda para se esclarecer sobre a vida de Pessanha, mas os mitos que se criaram e, consequentemente, perturbaram a leitura e interpretação de sua obra, foram determinantes para um caminho do Personagem Pessanha ser mais altivo do que o poeta Pessanha. Na literatura, transbordam casos desse tipo. Para exemplificar, o já citado Lord Byron, cuja face obscura deixou para trás a aventureira, política e romântica que ele tinha. Não à toa, os "Versos feitos sobre uma taça de crânio humano", poema mais célebre de Byron aqui no Brasil, é dado como uma obra-prima do Romantismo Inglês, mas há, pela tríade inglesa (composta por Percy B. Shelley (1792-1822), Keats (1795-1821) e pelo próprio Byron), poemas muito superiores. Sobre a face política de Byron, podemos comentar, inclusive, que foi ele admirador de Napoleão Bonaparte - dedicando-lhe uma Ode -, além de ter sido comandante de tropas Gregas nas guerras da independência do império Otomano, escrevendo uma de suas grandes obras - "As Ilhas da Grécia! As Ilhas da Grécia!". Foi no território grego que Byron morreu após febre constante, provavelmente contraída de ferimento de guerra.

(Na foto: Florbela Espanca)

Para além de Byron, Florbela Espanca (1894-1930), Simbolista de versos sofridos, cujo final da vida toma mais a curiosidade das pessoas do que a própria obra. Criou-se o mito, diante do sofrimento dos versos, de que Espanca havia se matado, algo que foi desmentido pelo padre que fez a missa de corpo-presente, que alegou, sob as leis da igreja, que ela não teria uma missa católica caso houvesse cometido suicídio.

Não somente na literatura, mas na área da pintura, no caso mais fulgente que há, o surrealista Salvador Dalí (1904-1989) é mais conhecido pelas excêntricas manias do que propriamente pela sua arte de Sonho. Mas, em seu caso, ele próprio moldou essa figura estranha, de fato surreal, para tornar-se uma figura pública para, assim, ficar na história em vários âmbitos. O grande questionamento é se Dalí é visto como um pintor ou como um personagem, o que afeta diretamente o posicionamento de seriedade perante as suas obras.

Inegável é o fato de que a biografia é essencial à compreensão correta de uma obra, pois tendo o alicerce biográfico, temos o contexto no qual o escritor decantou seus pensamentos em forma de versos ou capítulos. Porém, vê-se claramente que uma biografia mal feita tem efeitos mais danosos a uma obra, mesmo que essa seja de qualidade magnífica, do que podia se imaginar. Mesmo que muitos neguem, a figura do artista ainda é essencial para a interpretação do texto, até mesmo para o interesse pela sua obra.

*A Ateliê Editorial está lançando no Brasil boas edições dos livros de alguns Simbolistas Portugueses e Brasileiros. No caso dos Lusitanos, , de Antônio Nobre (1867-1900) e o Clepsidra, de Camilo Pessanha - edição em que me baseio para a parte do autor referido. Além deles, há a edição fac-similar de Faróis, de Cruz e Sousa (1861-1898). Um trabalho louvável para uma poética que tendia ao esquecimento.

Abraços, Cardoso Tardelli